Justiça de cidadania: aproximando a arbitragem do cidadão

Publicado originalmente

Por Adriano Corrêa de Mello

Os juizados especiais representaram grande avanço na universalização do acesso à Justiça. Porém, em razão de diversos fatores sociais e econômicos, camadas mais baixas da população pouco usufruem do serviço judicial, ainda burocrático e lento.

Há, de fato, um aumento de demanda nas ações propostas perante o Poder Judiciário, conforme demonstra o relatório “Justiça em Números 2020” [1], do Conselho Nacional de Justiça (2020, p. 48). Houve um incremento de 4,3% de casos novos no Brasil em relação ao ano anterior, o que, porém, não tem refletido na ampliação do acesso ao serviço judiciário para as camadas sociais e econômicas mais baixas da sociedade.

Demandas relativas às matérias de consumo são majoritárias, especialmente questões que envolvam contratos bancários de toda a espécie. A própria natureza das ações propostas demonstra a participação majoritária de uma classe social apta ao consumo de bens e serviços, tais como viagens, telefonia, compras e serviços pela internet, entre outros. A própria localização dos juizados, as formalidades inerentes a um processo judicial e a demora na solução do litígio deixam à margem do atendimento público uma parcela significativa da população, cujas demandas, por sua simplicidade, não encontram nos órgãos estatais os caminhos para a sua resolução.

O Poder Judiciário ainda não encontrou solução para o grande desafio que é aproximar o serviço judiciário de uma parte da população ainda carente de recursos e serviços públicos.

Em outra medida, o instituto da arbitragem, trazido pela Lei nº 9.307/96, inserido no bojo de outras reformas voltadas para ampliação do acesso à Justiça e de soluções multiportas, restou restrita a um segmento privado, bastante custoso e de pouco impacto social.

As experiências de arbitragem, até o momento, ficaram restritas às Câmaras Privadas de Arbitragem em matérias, preponderantemente, relativas ao direito empresarial.

O Código de Processo Civil de 1973, porém, em sua redação originária, trazia, de forma expressa, a possibilidade da instituição da arbitragem por meio judicial ou extrajudicial, in verbis:

“Artigo 1.072 — As pessoas capazes de contratar poderão louvar-se, mediante compromisso escrito, em árbitros que lhes resolvam as pendências judiciais ou extrajudiciais de qualquer valor, concernentes a direitos patrimoniais, sobre os quais a lei admita transação.
Artigo 1.073 — O compromisso é judicial ou extrajudicial. O primeiro celebrar-se-á por termo nos autos, perante o juízo ou tribunal por onde correr a demanda; o segundo, por escrito público ou particular, assinado pelas partes e por duas testemunhas”.

Vale lembrar também que a Lei 9.099/95, que trata da regulação dos juizados especiais, já previa a arbitragem como uma forma alternativa de resolução de conflitos paras as demandas de sua competência, ou seja, para as causas cujo valor não viesse a ultrapassar quarenta salários mínimos. Dispõe a Lei dos Juizados Especiais, ainda em vigor, acerca da instituição do “juízo arbitral” quando não alcançada a solução consensual para o conflito. Assim, informa que “não obtida a conciliação, as partes poderão optar, de comum acordo, pelo juízo arbitral, na forma prevista nesta lei”.

No entanto, o juízo arbitral não ganhou espaço na organização dos Tribunais de Justiça, permanecendo letra morta na práxis forense.

A Lei nº 9307/96 não restringe, porém, a solução arbitral apenas às cortes privadas. Conforme dispõe o artigo 13 daquela norma, poderá ser árbitro qualquer pessoa que disponha da confiança das partes. O §3º do artigo em comento informa ainda que “as partes poderão, de comum acordo, estabelecer o processo de escolha dos árbitros, ou adotar as regras de um órgão arbitral institucional ou entidade especializada”.

A possibilidade de escolha de órgão arbitral institucional não afasta, por óbvio, que esse órgão arbitral seja instituído por uma organização pública, desde que as partes manifestem a confiança e optem pela resolução do conflito naquele órgão.

Vale lembrar que, em Portugal, há a organização pelo Poder Executivo e por associações comerciais dos chamados Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo, em áreas mais distantes ou não assistidas por órgão judiciário. Estes são centros de informação, mediação e arbitragem. Conforme opina Pedroso [2] (2001), em relação ao exemplo português:

“A reforma da administração da Justiça, em sentido amplo, passa inevitavelmente pela adoção de um modelo distinto do atual, compreendendo uma articulação entre os vários tipos de reformas propostas e designadamente a ‘criação’ de processos, instâncias e instituições relativamente descentralizados, informais e desprofissionalizados, que substituam ou complementem, em áreas determinadas, a administração tradicional da Justiça e a tornem em geral mais rápida, mais barata e mais acessível”.

O exemplo francês segue no mesmo caminho do português com a adoção de um modelo de justiça de proximidade, fundado na criação em áreas carentes das Maisons de Justice et Droit, contando com mais de cem “casas” já implantadas. Burgos [3] observa que, na França, “a Justiça de proximidade remete ao projeto de articulação entre as instituições de socialização, visando uma construção coletiva e consensual de regras de convivência”.

Há no Brasil, de fato, diversos movimentos sociais que buscam resgatar a dignidade e a cidadania em áreas de maior pobreza, sobretudo movimentos não governamentais. A atuação do Estado é tímida ou inexistente, assim como do Poder Judiciário, este através de sua postura tradicionalmente passiva, no que se refere aos meios de solução de conflitos.

Torna-se necessário reconhecer a existência de um grande contingente de cidadãos que vivem à margem do serviço público judiciário.

A ampliação numérica de juizados especiais não foi suficiente para a incorporação dessa uma parcela da sociedade. Sua localização, seu rito formal, sua linguagem, seus custos indiretos e sua demora tornam inviável o acesso daquele cuja demanda não seja economicamente expressiva. Aliada à falta de presença do Estado nas áreas urbanas mais remotas, cria-se o espaço para a proliferação de meios perniciosos para a solução de conflitos, seja pelo tráfico, por milícias ou pelo uso da força. A experiência de ocupação das comunidades cariocas e, posteriormente, a ausência do Estado demonstraram de forma muito clara a importância de integração social do morador daquela região com políticas de resgate da cidadania. Acredita-se que não basta a ocupação policial, sendo indispensável a sensação de pertencimento daquele morador a uma estrutura social que não seja apenas repressiva, mas de escuta ativa e auxílio para resolução de conflitos.

Propõe-se, portanto, a implementação do instituto de arbitragem por meio do próprio órgão judiciário como uma forma de solução de conflitos mais rápida e próxima do cidadão.

Esgotadas as possibilidades de solução negociada e, ainda em fase pré-processual, a criação do órgão judiciário de arbitragem, mediante fixação de regras negociadas que permitam a solução célere e justa, inclusive por equidade, poderá representar uma solução justa e que possa ser construída dentro da própria comunidade, o que eleva a possibilidade de efetividade das medidas encontradas.

O CNJ, por meio da Resolução 125/2010, instituiu a política judiciária nacional para o tratamento adequado de conflitos. Em âmbito estadual, a supervisão do projeto encontra-se a cargo dos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (Nupemecs). Por sua vez, os projetos existentes englobam a estratégia de estímulo à pacificação social e tratamento adequado de conflitos, por meio dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs).

Trata-se de política judiciária importante para que soluções sejam encontradas por meio da mediação. O projeto, porém, deve avançar para que seja alcançada também a disseminação de uma política preventiva de informação e instrução do cidadão para a autorregulação dos conflitos e, ao final do processo, a complementação através da criação de núcleos institucionais de arbitragem, os quais poderiam ser compostos por servidores do próprio Poder Judiciário, isoladamente, ou em parceria com órgãos afins.

A porta de entrada do serviço judiciário deve ser dotada de capacidade de orientação prévia do cidadão/usuário, sobretudo de baixa renda, evitando-se o agravamento de conflitos, por meio de ações preventivas que possam encontrar soluções alternativas à demanda judicial. Pode o Poder Judiciário fomentar a política de autoconciliação, através de orientação e ensino de técnica de solução negociada. Nesse processo de tratamento global do conflito, em uma etapa final, a arbitragem mostra-se um caminho possível, célere e próximo de um ideal de justiça, trazendo a essa parcela da população uma presença real e atuante do Estado.

De outro lado, as despesas do Poder Judiciário são, sabidamente, elevadas, assim como o custo econômico de cada processo. Segundo o relatório “Justiça em Números 2020”, que traz informações relativas ao ano de 2019, o custo de cada processo no Brasil corresponde, em média, a R$ 479,16 por habitante, ou 2,7% dos gastos totais de União, Estados e municípios.

Diante do elevado custo do processo, seja direto ou indireto, questões cujo valor econômico não possam ser aferidos ou sejam significativamente baixos deixam de ser apreciadas pelo Poder Judiciário, diante do desestímulo provocado pelo custo para ingresso com uma ação judicial. Muitas vezes, o simples custo de uma passagem em transporte público é fator impeditivo para o acesso à Justiça.

Conclui-se, assim, que a proposta de uma “Justiça de cidadania” deriva de dois pressupostos fundamentais: o primeiro, relativo ao reconhecimento e à identificação de uma parcela significativa da população ainda à margem de seus direitos fundamentais, socialmente excluída das esferas de poder, não atendidas pelos caminhos tradicionais de atendimento do Poder Judiciário; o segundo, ao fato de que a arbitragem, instituída pela Lei nº 9307/96, ainda não alcançou o propósito de universalização como meio alternativo de solução de conflitos.

Defende-se, portanto, a prestação de um serviço de arbitragem por intermédio de órgãos públicos, dentro de um contexto de atendimento global, a partir do serviço de orientação, de mediação e, ao fim, da própria arbitragem. O Poder Judiciário poderá, neste contexto, ser um ator importante para fomentar essa atividade de resgate da cidadania.

[1] Justiça em Números 2020: ano-base 2019/Conselho Nacional de Justiça — Brasília: CNJ, 2020.

[2] PEDROSO, João. A construção de uma justiça de proximidade: o caso dos Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo. Revista Crítica de Ciências Sociais. 60 (2001) 33-60. Coimbra: 2001.

[3] BURGOS, Marcelo Baumann. JUSTIÇA DE PROXIMIDADE—NOTAS SOBRE A EXPERIÊNCIA FRANCESA. Revista da Escola Nacional de Magistratura, v. 2, n. 4, 2007.

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Assista ao Minicurso gravado (06 de outubro a 27 de outubro de 2020): 

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Veja comentários de quem já assistiu:

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Ricardo Y2

“Excelentes explanações, especialmente pelos exemplos práticos apresentados”

José Carlos Neves de Andrade

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