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Juros Extorsivos no Brasil: Como o brasileiro perdeu seu poder de compra
Publicado originalmente
Por Ladislau Dowbor
“Outro ponto intrigante da dinâmica da economia brasileira: suas extravagantes taxas de juros.”
Celso Furtado
“Os bancos deveriam voltar a fazer o que faziam quando foram criados: oferecer um local seguro para as poupanças e capital a negócios que pretendem se desenvolver.”
J. C. Polychroniu
“Crédito é igual a veneno de cobra: dependendo da dose pode curar ou matar.”
Cartilha Sebrae
A financeirização está no centro dos debates econômicos, porque aprofunda a desigualdade e sobretudo porque trava o desenvolvimento. Este último aspecto é alvo de numerosos estudos internacionais, e aqui abordamos o mecanismo como se manifesta no Brasil. Basicamente, os crediários, cartões de crédito e juros bancários para pessoa física travam a demanda, pois tipicamente o comprador paga o dobro do valor do produto, endivida-se muito comprando pouco, o que esteriliza o impacto de dinamização da economia pela demanda. Os juros elevados para pessoa jurídica travam por sua vez o investimento, isto que o empresário efetivamente produtivo já enfrenta a fragilidade da demanda e pode simplesmente aplicar na dívida pública. E a taxa Selic elevada, ao provocar a transferência de centenas de bilhões dos nossos impostos para os bancos e outros aplicadores financeiros, trava a capacidade do Estado expandir políticas sociais e infraestruturas. Essa dinâmica, no contexto de uma carga tributária que onera desproporcionalmente o consumo popular, de um sistema de evasão dos impostos através de preços de transferência e paraísos fiscais, gera um dreno insustentável de recursos. Assim temos esta estranha situação de um PIB que estagna e de lucros financeiros que se agigantam. As recomendações vão no sentido de uma reforma financeira no sentido amplo, muito além das propostas de ajuste fiscal.
Introdução: resumo executivo Um debate fundamental pede passagem: a esterilização dos recursos do país através do sistema de intermediação financeira, que drena em volumes impressionantes recursos que deveriam servir ao fomento produtivo e ao desenvolvimento econômico. Os números são bastante claros, e conhecidos, e basta juntá-los para entender o impacto. A conta é simples. Segundo o Banco Central, o saldo das operações de crédito do sistema financeiro, incluindo recursos livres e direcionados, atingiu 3.111 bilhões reais, 54,5% do PIB, em julho de 2015. Sobre esse estoque incidem juros, cujo valor médio no mesmo período era de 28,4% ao ano (o equivalente na Europa é da ordem de 3-5%). Isto significa que a carga de juros pagos apenas nos bancos representa R$ 880 bilhões, 15,4% do PIB. Uma massa de recursos desse porte transforma a economia. Analisar a sua origem e destino é, portanto, fundamental. (BCB, ECOIMPOM, ago. 2015) Se acrescentarmos os recursos drenados pela dívida pública às custas dos nossos impostos, com a elevada taxa Selic, da ordem de 400 bilhões, e os diversos tipos de crediários do sistema comercial, o travamento torna-se insustentável: a economia se “financeirizou” de forma generalizada. Às custas do consumidor e do produtor, foram os intermediários quem assumiram o modelo econômico realmente existente.
É bom lembrar que o banco é uma atividade “meio”; a sua produtividade depende de quanto repassa para o ciclo econômico real, não de quanto dele retira sob forma de lucro e aplicações financeiras. Como é extraído esse volume de recursos e o que com eles acontece? Em geral, as pesquisas não cruzam os crediários comerciais e os custos do cartão de crédito com as diversas atividades bancárias formais e os ganhos sobre a dívida pública, e muito menos ainda com os fluxos de evasão para fora do país: ou seja, não se estuda o fluxo financeiro integrado. O exercício que empreendemos mostra, entre outros, a que ponto carecemos de um sistema estatístico financeiro adequado para quantificar e analisar os impactos para os diversos setores da economia real, para os diversos agentes econômicos, para os diversos grupos sociais, para as diversas regiões do país. Essa situação pesa sobre a presente análise, pois teremos de trabalhar com ordens de grandeza e aproximações. Aqui simplesmente foram juntadas as peças, conhecidas, para obter um primeiro desenho da engrenagem completa. Portanto, o fluxo financeiro integrado, na visão dos agentes econômicos que sofrem o seu impacto: o consumidor, o empresário, o administrador de projetos públicos. O principal entrave ao desenvolvimento do país aparece com força. A reforma financeira é vital, mais do que o reajuste fiscal proposto, compreensível este último mais por razões de equilíbrios políticos do que por razões econômicas.
Alguns exemplos para entender a dinâmica, antes de entrar no detalhe. O crediário cobra, por exemplo, 104% para “artigos do lar” comprados a prazo. Acrescentem-se os 403% (!) do rotativo no cartão, os mais de 253,2% (!) no cheque especial, e temos neste caso grande parte da capacidade de compra dos novos consumidores drenada para intermediários financeiros, esterilizando a dinamização da economia pelo lado da demanda (Valor, 23 set. 2015). O juro bancário para pessoa física, em que pese o crédito consignado, que, na faixa de 25 a 30%, ainda é escorchante, mas utilizado em menos de um terço dos créditos, é da ordem de 103% segundo a ANEFAC (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contábeis). Na França os custos correspondentes se situam na faixa de 3,5% ao ano. A população se endivida muito para comprar pouco no volume final. A prestação que cabe no bolso pesa no bolso durante muito tempo. O efeito demanda é travado. A parte da renda familiar que vai para o pagamento das dívidas passou de 19,3% em 2005 para 46,5% em 2015: ninguém entra em novas compras com esse nível de endividamento. Os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica de crescimento estimulado pela demanda, que permitiu uma fase de forte crescimento da economia, mesmo frente à crise mundial de 2008. Efeito semelhante é encontrado no lado do investimento, da expansão da máquina produtiva, pois se no ciclo de reprodução o grosso do lucro vai para intermediários financeiros, a capacidade do produtor expandir a produção é pequena, acumulando-se os efeitos do travamento da demanda e da fragilização da capacidade de reinvestimento. Quanto ao financiamento bancário, os juros para pessoa jurídica são proibitivos, da ordem de 24% para capital de giro, 35% para desconto de duplicatas, e tocar uma empresa nessas condições não é viável. Existem linhas de crédito oficiais, mas compensam em parte apenas a apropriação dos resultados pelos intermediários financeiros. Na zona do euro o custo médio para pessoa jurídica é de 2,20% ao ano.(ECB, 2015) Terceiro item da engrenagem, a taxa Selic. Com um PIB da ordem de 5,5 trilhões, um por cento do PIB representa 55 bi. Se o gasto com a dívida pública atinge 5% do PIB, são mais de 250 bilhões dos nossos impostos transferidos essencialmente para os grupos financeiros, a cada ano. Em 2015 esse montante deve atingir cerca de R$ 400 bilhões. Com isso se esteriliza parte muito significativa da capacidade do governo financiar infraestruturas e políticas sociais. Além disso, a Selic elevada desestimula o investimento produtivo nas empresas pois é mais fácil – risco zero, liquidez total – ganhar com títulos da dívida pública. E para os bancos e outros intermediários, é mais simples ganhar com a dívida do que fomentar a economia buscando bons projetos produtivos, o que exige identificar clientes e projetos, analisar e seguir as linhas de crédito, ou seja, fazer a lição de casa, usar as nossas poupanças para fomentar a economia. Os fortes lucros extraídos da economia real pela intermediação financeira terminam contaminando o conjunto dos agentes econômicos. A economia funciona com três motores principais: a demanda das famílias que estimula mais produção, investimentos e empregos; a atividade empresarial, que depende desta demanda mas também de acesso a crédito fácil e barato para financiar a sua expansão; e o investimento público sob forma de políticas sociais e infraestruturas, que geram um contexto econômico mais dinâmico para todos. Um quarto “motor” da economia, o comércio exterior, joga no Brasil um papel importante mas complementar, e será aqui apenas parcialmente abordado. Basta anotar que as commodities perderam 45% do valor de mercado no caso do minério de ferro em 2014, perdas também no caso da soja e do suco de laranja, e que, portanto, o setor externo não é alternativa nesta fase da economia mundial, além do fato que com 100 milhões de pessoas a serem promovidas a condições de vida digna, o nosso eixo estratégico de desenvolvimento continua centrado na dinâmica interna. Temos o privilégio de ter um amplo horizonte econômico interno a ocupar. O nosso foco é que quando o sistema de intermediação financeira, em vez de fertilizar e fomentar, trava as três dinâmicas principais, a economia é paralizada. É neste contexto de economia parada ou em recessão que constatamos aumentos impressionantes dos lucros dos intermediários financeiros. A conclusão evidente é que os intermediários se transformaram em atravessadores. Não há como não relacionar o fato de o Banco Itaú, por exemplo, ter visto os seus lucros crescer em 30,2%, o Bradesco em 25,9%, enquanto o PIB estanca.
Assim entende-se que os lucros declarados dos intermediários financeiros avancem tanto quando o PIB regride, aprofundando a crise atual:
* Trata-se da soma do lucro dos bancos Itaú, Bradesco, CEF, Banco do Brasil, Santander e HSBC. Os anos de 2011 e 2014 não incluem o lucro do HSBC. Os anos de 2012 e 2013 incluem. O aumento do lucro dos bancos, de 18,5%, é muito desigual. Por exemplo, entre 2013 e 2014 o lucro líquido do Itaú cresceu de 30,2%, do Bradesco 25,90%, do Banco do Brasil 9,6% e da CEF 5,5%.
E fica mais claro porque o PIB estagna enquanto o desemprego é relativamente limitado: o país trabalha, mas os resultados são drenados pelos crediários, pelas cobranças e juros nos cartões de crédito, pelas tarifas absurdas pagas para qualquer transferência ou pagamento online, pelos juros bancários para pessoa física, pelos juros para pessoa jurídica e pela alta taxa Selic. A perspectiva é de agravamento, na medida em que, em nome da austeridade, se trava ainda mais a economia e, em nome do controle da inflação, se eleva a taxa Selic. Não somos evidentemente os únicos a enfrentar esses problemas que assolam hoje a economia mundial. É a dimensão brasileira da financeirização mundial que apresentamos aqui. Não há isolamento financeiro neste mundo globalizado.
Fechando a ciranda, temos a evasão fiscal. Com a crise mundial surgem os dados dos paraísos fiscais, na faixa de 20 trilhões de dólares segundo o The Economist, para um PIB mundial de 73 trilhões. O Brasil participa com um estoque da ordem de 520 bilhões de dólares, cerca de um terço do nosso PIB. Ou seja, estes recursos que deveriam ser reinvestidos no fomento da economia, não só são desviados para a especulação financeira, como escapam em grande parte dos impostos. Já saíram, por exemplo, os dados do Itaú e do Bradesco no Luxemburgo (ICIJ), bem como os do misinvoicing ou transfer pricing (fraude nas notas fiscais) que nos custa US$ 35 bilhões/ano enviados ilegalmente para o exterior (cerca de 2,5% do PIB que se perdem), segundo pesquisa do Global Financial Integrity, além dos fluxos canalizados pelo HSBC e outros bancos.
Junte-se a isso o fato de os nossos impostos serem centrados nos tributos indiretos, com os pobres pagando proporcionalmente mais tributos do que os ricos, bem como a isenção de lucros e dividendos, e temos o tamanho do desajuste. De certa forma, temos aqui o espelho em escala brasileira do que Thomas Piketty analisa para os países desenvolvidos.
Procuramos aqui apresentar uma sistematização do mecanismo, numa linguagem que qualquer não economista possa entender. Este ponto é importante: grande parte do desajuste estrutural se deve ao fato que as pessoas em geral não entendem os mecanismos financeiros. E se trata do bolso de todos nós. As contas batem. Os dados são conhecidos, aqui se mostra como se articulam.
O ideal, naturalmente, seria que os dados estatísticos produzidos pelas diversas instituições apresentassem, de maneira clara, os fluxos de recursos e os custos e benefícios para os diversos agentes econômicos e sociais, ou seja, a produtividade comparada dos diversos fluxos. No quadro estatístico realmente existente, há fragilidades. Mas as ordens de grandeza são convincentes. Considerando que para muitos a análise econômica é profundamente ideologizada e que a confiabilidade é essencial, todos os números aqui apresentados podem ser checados nos links com as fontes primárias, ao longo do texto e na bibliografia.
O texto que segue, mais do que uma opinião, constitui um relatório sobre como a engrenagem foi montada e como pode ser redirecionada. Uma ferramenta que espero seja útil para nos direcionarmos, pois precisamos de muito mais gente que se dê conta de como funciona o nosso principal entrave. Não há PIB que possa avançar com tantos recursos desviados.
A compreensão desta estranha crise, que claramente não é para todos, já está entrando na mídia, como vemos, por exemplo, nesta nota de Ruth Costas, da BBC: “O Itaú teve ainda um aumento de seu lucro de 30,2% em 2014 – registrando o maior lucro da história dos bancos brasileiros de capital aberto segundo a Economática (R$ 20,6 bilhões). O lucro do Bradesco também se expandiu bastante: 25,6%. E isso em um momento em que consultorias econômicas estimam um crescimento próximo de zero para o PIB de 2014. Diante desses números, não é de se estranhar que dos 54 bilionários brasileiros citados no último levantamento da revista Forbes, 13 estejam ligados ao setor bancário” (COSTAS, 2015). Artigos indignados da própria FIESP só reforçam o argumento. Na realidade, muita gente já se dá conta de onde estão nossos principais desequilíbrios.
O nosso desafio, portanto, não é só de um “ajuste fiscal”, e sim de um ajuste fiscal-financeiro mais amplo. Tanto o consumidor como o empresário-produtor e o Estado, na sua qualidade de provedor de infraestruturas e de políticas sociais, têm tudo a ganhar com isso. Um empresário com quem discuti este texto constatou que estava gastando mais com juros do que com a folha de pagamento. Aqui temos até interesses comuns entre empresários efetivamente produtivos, situados na economia real, e os trabalhadores que querem se tornar mais produtivos e ganhar melhor. Não é mais possível não vermos o papel dos atravessadores que travam a economia.
Não se trata aqui de simples crítica. A máquina que desenvolvemos, com milhares de agências, bons técnicos na área financeira, boas infraestruturas informáticas e softwares correspondentes, redes comerciais sofisticadas, sistemas que conectam online os cidadãos e as empresas – tudo isso permite que tenhamos um sistema de intermediação financeira enxuto, ágil e barato – mas que precisa ter a sua função reconvertida, no sentido de servir à economia e não dela se servir a ponto de travá-la. O mesmo sistema que hoje nos trava pode se tornar em poderosa alavanca de desenvolvimento. Não são necessários aqui grandes investimentos, e sim uma reorientação reguladora no sentido determinado no artigo 192 da nossa Constituição sobre o Sistema Financeiro Nacional: “Promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade”. E lembrando que os bancos, mesmo privados, não trabalham com dinheiro próprio, e sim com o nosso, e devem ser autorizados por uma carta patente do Banco Central. E já é mais que tempo de o Banco Central assumir a sua função de regulador financeiro e o cidadão batalhar por um sistema mais confiável e transparente.
Intermediação financeira e produtividade da economia
Antes de tudo, precisamos fazer as pazes com o que entendemos por intermediários financeiros. Trata-se aqui de pessoas ou empresas que ganham não produzindo bens que nos são úteis em si – como um par de sapatos –, mas que ganham negociando os direitos de acesso aos bens. Esses direitos constituem papéis, como dinheiro, sinais magnéticos no cartão, tickets refeição ou semelhantes. Os que gerem o acesso aos papéis e sinais magnéticos tanto podem facilitar a vida como torná-la muito complicada e sobretudo mais cara. Mas o essencial aqui é entender que se trata de atividades “meio”, pois ninguém come dinheiro. A intermediação financeira se justifica pelo impacto que tem sobre outros setores da economia, os que geram riqueza real, os bens e serviços com utilidade final.
Esta distinção entre atividades “meio” e atividades “fins” ajuda muito. Se eu procuro um médico, é natural que haja uma pessoa que verifique a minha identidade, outra que me faça assinar diversas autorizações, outra ainda que organiza a papelada no andar de cima e assim por diante. Mas quem eu quero ver é o médico. A parte burocrática é área “meio”, necessária, mas justificada apenas se facilita a atividade fim, que é a que me dá acesso ao serviço que procuro. Quando se torna maior do que o necessário, em vez de facilitar, trava o processo com custos, demoras, irritações e perda de produtividade. É uma questão de equilíbrios.
Os intermediários financeiros são necessários? Bancos alemães como os sparkassen, que gerem o grosso das poupanças do país, constituem caixas econômicas municipais. Agregam poupanças das famílias e as repassam a quem queira abrir uma pequena empresa ou organizar um serviço útil para a comunidade. Ou seja, exercem a função fundamental de oferecer um abrigo mais seguro do que o colchão tradicional, rendem um pequeno benefício ao poupador e enriquecem a comunidade ao transformar patrimônio financeiro em capital produtivo. Essa riqueza adicional criada permite que o banco tenha lucro, ao receber o empréstimo de volta com juros. Mas aqui o seu lucro faz parte da riqueza que contribuiu a criar. O lucro apropriado sem gerar a riqueza correspondente está apenas se apropriando do fruto do trabalho que outros já criaram.
Um intermediário financeiro pode, portanto, ser muito útil, dependendo da qualidade do investimento que estimula nas áreas fins da economia e de quanto cobra pelos seus serviços. Um bom gerente de crédito é aquele que sabe identificar oportunidades de fomento, adiantando o dinheiro parado a quem vai dinamizar a economia com atividades na economia real. Portanto, os bancos e outros intermediários financeiros são úteis quando produzem mais do que custam. No nosso caso, como veremos, custam muitas vezes mais do que o que contribuem a produzir. J. C Polychroniu resume o desafio de maneira simples: “Os bancos deveriam voltar a fazer o que faziam quando foram criados: oferecer um local seguro para as poupanças e capital a negócios que pretendem se desenvolver”.
Um segundo ponto a ser esclarecido, que tem tudo a ver com o primeiro, é que investimento e aplicação financeira não são a mesma coisa. Para os de língua inglesa é complicado, pois em inglês se usa investment para ambas as operações. O The Economist, na impossibilidade de qualificar honestamente de investidores os que aplicam apenas em papéis, criou uma fórmula interessante: speculative investors. Na França, é muito claro para qualquer estudante de economia a diferença entre investissements e placements financiers, sendo estas últimas naturalmente aplicações financeiras. A confusão é grave. O fato de os nossos bancos se referirem regularmente a investimentos quando se trata de aplicações em papéis tende a nos confundir. A confusão gerada, aliás, é voluntária, pois “investir” parece mais respeitável.
As aplicações financeiras podem ser muito lucrativas, mas geram lucros de transferência, e não por criação de riqueza suplementar. Se eu compro dólares por prever que a moeda vai subir, e acertei na aposta, poderei revendê-los com proveito e comprar mais coisas. A pessoa que os vendeu viu, pelo contrário, a sua capacidade de compra baixar na mesma proporção: ele agora tem reais, e o dólar está mais caro. No país não se produziu um par de sapatos a mais, não se construiu uma casa a mais, a riqueza acumulada do país continua idêntica por mais que façamos frenéticas transações financeiras. São ganhos de transferência, de direitos sobre o produto que já existe, ou, no caso de processos especulativos, como os mercados de futuros, sobre um produto que ainda sequer for produzido, mas já tem dono.
Agora, se eu realizo efetivamente o que pode ser qualificado de investimento, o que tanto pode ser a criação de uma fábrica de sapatos como o financiamento de um curso de formação tecnológica para pequena e média empresa, estou criando riqueza, aumentando o capital do país. No caso do investimento, mesmo que eu construa casas que depois tenha de vendê-las com perdas, o país ganhou casas onde pessoas concretas poderão morar. O estoque de riqueza do país aumentou. Se eu invisto o meu patrimônio, estou transformando-o em capital que gera mais riqueza. Porém, se eu faço uma aplicação financeira, estou possivelmente aumentando o meu patrimônio, mas não criando capital no sentido produtivo.
Quem viu Uma Linda Mulher lembrará como o aplicador financeiro, quando perguntado pela prostituta o que ele faz na vida, responde, de maneira direta: “Eu faço o mesmo que você, eu f… com as pessoas por dinheiro” (Same as you, I screw people for money). Ele sabe perfeitamente que não está criando riqueza nenhuma, e sim está se apropriando da que foi criada por outros. David Ruccio, para o Real World Economics, explicita isto claramente: “As finanças podem ser muito lucrativas, tanto para as instituições bancárias como para estudantes de Harvard, mas a única coisa que fazem é capturar parte do valor criado em outro lugar na economia. Em vez de criar riqueza, os rentistas simplesmente a transferem – dos outros para si.” Hoje, entre as grandes fortunas, muito poucos são os que criam riqueza, pois tende a ser muito mais lucrativo transferir para si a riqueza produzida por outros.
No novo mundo econômico que construímos a partir dos anos 1980, o poder é dos intermediários. Uma vez mais, podem ser úteis quando contribuem mais para a economia do que o custo de apropriação e de desorganização que provocam. Mas quando se tornam muito poderosos e podem, inclusive, dobrar as leis que regulam as suas atividades e gerar as leis que os favorecem, o seu poder desarticulador sobre quem quer investir, produzir e consumir pode ser muito grande.
Assista ao Minicurso gravado (06 de outubro a 27 de outubro de 2020):
Perícia Judicial em Contratos Financeiros
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Aula 1: Conceito Financeiro da Taxa de Juros
Aula 2: Índices Econômicos para Cálculos Judiciais
Aula 3: Fundamento Jurídicos e Econômicos para Defesa do Consumidor
Aula 4: Estudo de Caso de Revisão Contratual