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Impugnação de árbitro e preclusão temporal na jurisprudência
Publicado originalmente
Por José Rogério Cruz e Tucci
Entre as denominadas “Normas Fundamentais do Processo Civil”, constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabeleceu, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a atuação, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes etc.).
Como já tive oportunidade de escrever nesta mesma coluna, o fundamento da boa-fé, no âmbito do processo, decorre da necessidade de cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há de se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do due process of law.
A jurisprudência dos nossos tribunais tem se baseado no princípio da boa-fé processual como critério válido para rechaçar a invocação maliciosa das normas processuais e o comportamento inadequado de uma parte, em detrimento do direito à efetividade da tutela jurisdicional do outro litigante.
Isso tudo encontra campo fértil no terreno do processo arbitral, no qual, com maior razão, a atitude leal e proba das partes deve estar presente desde o requerimento de instauração da arbitragem até a decisão final a ser proferida na respectiva demanda. Não se trata, como é cediço, de transplantar pura e simplesmente a referida norma do Código de Processo Civil para a arbitragem, mas, sim, de reafirmar a interação que deve existir — quando compatível e coerente — num mesmo ordenamento jurídico, entre diferentes sistemas processuais.
O artigo 14 da Lei de Arbitragem é bem claro ao preceituar que as hipóteses de suspeição e impedimento do árbitro são as mesmas previstas no artigo 146 do Código de Processo Civil.
E, assim, no âmbito do processo arbitral, a parte que desejar arguir a incapacidade do árbitro por algum motivo de suspeição, a teor do artigo 20 da Lei n° 9.307/96, deverá “fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem”.
Não obstante, com o crescente número de ações distribuídas visando à anulação da sentença arbitral, tem-se observado que um dos fundamentos que embasam o ajuizamento de tais demandas é exatamente o da alegação de suspeição do árbitro ou dos árbitros, por razões muitas vezes absolutamente inconsistentes.
Verifica-se inclusive que o argumento da incompatibilidade subjetiva do árbitro refere-se a episódios pretéritos, conhecidos ou passíveis de serem investigados pelas partes, que não foram oportunamente apontados ao ensejo da constituição do painel arbitral.
A rigor, na maioria dessas situações, a parte que sai derrotada no processo arbitral guarda “no bolso do colete” a alegação (tardia) de suspeição do árbitro, para suscitá-la na ação judicial em que busca a anulação da sentença arbitral. É assim um caso clássico da denominada “nulidade de algibeira”!
Como bem frisado por Hermes Marcelo Huck, em original ensaio intitulado “As táticas de guerrilha na arbitragem” (publicado na coletânea 20 anos da lei de arbitragem, São Paulo, Gen-Atlas, 2017, p. 312): “Há práticas processuais de guerrilha que extrapolam os limites e podem ser consideradas litigância de má-fé. A tática primeira do guerrilheiro arbitral é fugir do processo. Tão logo notificado do requerimento de arbitragem ou se queda silente ou encaminha a petição à Câmara argumentando sobre o descabimento da arbitragem. São os brados de inarbitrabilidade objetiva ou subjetiva que primeiro são ouvidos pelas Câmaras. A lei oferece instrumentos para superar tais chicanas, porém a inafastável consequência dessas práticas — por mais infundadas que sejam — implicam o retardamento do início do processo. Não raro, a parte fugitiva, esgotadas as manobras diversionistas, acaba por surgir no dia da audiência para assinatura do termo, reiterando protestos e clamando ameaças de nulidade. Essa é apenas a tática inicial, pois outras tantas podem surgir, na sequência… Cabe também mencionar o velho estratagema de retardar o processo apresentando impugnações frívolas ao nome do árbitro indicado pela parte contrária ou ao presidente do tribunal. Casos há em que o guerrilheiro apresenta impugnação ao próprio árbitro por ele nomeado. Não raro, para postergar a formação do tribunal, a parte chicaneira submete questionários despropositados a serem respondidos pelos árbitros já indicados, e, quando não, levanta exigências solicitando revelações descabidas, que resultam em impugnações igualmente descabidas. A literatura arbitral é prolífica em tratar casos dessa estirpe que, ao final, são resolvidos — mas não raro —, implicam renúncias desnecessárias e significativo atraso no curso do processo”.
Em determinadas circunstâncias, ainda mais graves, a alegação de suspeição ocorre apenas na petição inicial da ação anulatória da sentença arbitral. Nesses casos, em várias ocasiões, age a parte demandante imbuída de inequívoca má-fé, pois retira do árbitro a oportunidade de apresentar esclarecimentos aos fatos que lhe são imputados, porque toma conhecimento de tais alegações somente depois de ajuizada a ação anulatória.
Expedientes dessa natureza têm sido reprimidos, com veemência, pelos tribunais estatais, sendo de todo cabível a imediata imposição de sanção pecuniária à parte que abusa do processo.
Com efeito, a alegação extemporânea atinente à suspeição do árbitro, por motivos anteriores à instauração do processo arbitral, não pode ser acolhida quando deduzida como alicerce da ação anulatória. E isso porque operou-se, de forma inequívoca, preclusão temporal acerca dessa questão. É dizer: a suspeição do árbitro não alegada no momento processual oportuno, no bojo do processo arbitral, não mais pode ser objeto de discussão em futura ação anulatória.
De fato, se isso fosse possível, seria muito cômodo à parte que perdeu a demanda arbitral, alegar, posteriormente, “de algibeira”, a suspeição de um ou de todos os árbitros que proferiram a sentença arbitral.
Repudiando esse modus procedendi — aliás, nada recomendável —, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, no recentíssimo julgamento da Apelação n° 1048961-82.2019.8.26.0100 (10.03.2021), da relatoria do desembargador Azuma Nishi, sufragou o entendimento de que a falta de impugnação tempestiva à imparcialidade e independência do árbitro impede a invocação desse fundamento como causa de pedir em ação anulatória:
“(…) Entretanto, não apresentaram nenhuma impugnação; a suspeita de parcialidade foi suscitada somente após o resultado do procedimento arbitral, o que contraria o comando do artigo 20 da lei de regência, segundo o qual a parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem...”.
Em senso análogo, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Embargos de Declaração na Sentença Estrangeira Contestada n° 9.714/EX, com voto condutor da ministra Maria Thereza de Assis Moura, assentou que:
“(…) Não prospera a alegação da parte requerida de parcialidade dos árbitros por exercerem atividade mercantil semelhante à da parte autora. Com efeito, extrai-se dos autos que esse tema não foi arguido pela requerida no decorrer do procedimento arbitral, não se prestando, pois, como óbice à homologação”.
Assim, em conclusão, bem é de ver que se o litigante deixou de impugnar o árbitro, no momento processual oportuno e em sede adequada, não pode pleitear, posteriormente, a anulação de sentença arbitral, com fundamento no artigo 32, inciso II, da Lei de Arbitragem.
“Dormientibus non sucurrit ius“!