Dos juros moratórios aplicáveis aos débitos condominiais: o céu é o limite?

Publicado originalmente

Por Domingos Barroso da Costa

Em nossa atuação quotidiana junto aos tribunais superiores, recentemente nos deparamos com interessante questão. Referimo-nos ao limite dos juros moratórios aplicáveis a débito condominial, em relação aos quais recentes julgados do STJ demonstram, no mínimo, uma tendência à estabilização do entendimento segundo o qual sua fixação não se detém nos limites ordinários previstos nos artigos 406 do Código Civil e 161, §1º, do Código Tributário Nacional, sendo livre a definição de seu montante em convenção de condomínio, na literalidade do §1º do artigo 1.336 do Código Civil, abaixo transcrito:

“Artigo 1.336 — (…)
§1º. O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de 1% ao mês e multa de até 2% sobre o débito”.

A demonstrar a tendência indicada, transcrevemos a ementa de julgado recente, reportando, ainda, ao REsp 1.002.525/DF (relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 16/9/2010, DJe 22/9/2010) e ao AgRg no REsp 1.445.949/SP (relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 7/2/2017, DJe 16/2/2017):

“Agravo interno no recurso especial. Ação de cobrança. Alegação de cerceamento de defesa. Falta de prequestionamento. Juros de mora. Convenção de condomínio. Observância. Despesas condominiais. Fração ideal. Agravo interno desprovido. 1) (…); 2) Nos termos do artigo 1.336, § 1º, do Código Civil, o condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros de mora convencionados ou, não sendo previstos, os de 1% ao mês e multa de até 2% sobre o débito (…)” (AgInt no REsp 1.776.536/MG, relator ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 7/5/2019, DJe 22/5/2019).

Esse foi o entendimento que norteou a decisão monocrática proferida no REsp nº 1839560, da lavra do ministro Marco Aurélio Bellizze, que, nele apoiado, diante de juros moratórios fixados em 5% ao mês pela convenção de condomínio, asseverou que “após a vigência do artigo 1.336, § 1º, do CC/2002, é possível à convenção de condomínio a fixação de juros moratórios acima de 1% ao mês, em caso de inadimplemento das obrigações condominiais”.

Ocorre que a autonomia da vontade encontra limites em nosso ordenamento, em que as relações privadas e o Direito a elas aplicável submetem-se aos parâmetros principiológicos firmados pela Constituição Federal, em um contexto de constitucionalização do Direito Civil que busca harmonizar liberdade e solidariedade (TEPEDINO; OLIVA, 2020). A nosso ver, é nessa perspectiva que a questão há de ser analisada e, ainda que não se aplique à hipótese a margem ordinária prevista nos artigos 406 do Código Civil e 161, §1º, do Código Tributário Nacional, alguma limitação há de se impor, sob pena de se chancelarem abusos que não se coadunam com os parâmetros principiológicos que regem nosso direito civil e que impõem restrições à autonomia da vontade que anima as relações privadas.

Na moldura estabelecida, destacamos, primeiramente, que os juros moratórios relativos a débitos condominiais, se não estão adstritos ao patamar de 1% imposto pelos dispositivos supracitados, nem por isso estão livres da observância da premissa de proporcionalidade implícita ao texto constitucional, e que se pode afirmar pressuposto de justiça, devendo orientar a criação, interpretação e aplicação do Direito. Do plano normativo ao concreto, ainda que reconheçamos a prevalência do entendimento pela possibilidade de aplicação de juros moratórios superiores a 1% pelo STJ — com esteio no que prevê o artigo 1.336, §1º, do CC —, nada autoriza sua fixação em patamares que em muito se distanciem desse referencial e, assim, se mostrem abusivos, violadores de preceitos regentes das relações privadas, como se dá, por exemplo, com o postulado da razoabilidade.

É preciso relacionar a norma ao caso concreto e, diante de juros nitidamente abusivos, não há como reconhecer o enquadramento válido da hipótese à norma, considerados texto e contexto (ÁVILA, 2019). Analisando o postulado da razoabilidade como equidade, a exigir a harmonização da norma geral com o caso individual, assim ensina Humberto Ávila:

“Nos exemplos acima referidos a regra geral, aplicável à generalidade dos casos, não foi considerada aplicável a um caso individual, em razão de sua anormalidade. Nem toda norma incidente é aplicável. É preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese. Uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas. Uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária. Nessas hipóteses as condições de aplicação da regra são satisfeitas, mas a regra, mesmo assim, não é aplicada” (2019, p. 198).

A partir do postulado da razoabilidade, portanto, diante de juros que em muito superem o referencial ordinário, verifica-se a impossibilidade de aplicação do entendimento prevalente no STJ — que interpreta o artigo 1.336, §1º, do CC em sua literalidade (um texto sem contexto) —, sob pena de se chancelar o abuso na definição dos juros. Salvaguardando uma liberdade absoluta, uma autonomia da vontade sem limites, a aplicação descontextualizada da regra a casos que em muito se afastem do referencial ordinário vigente, contrariando o postulado da razoabilidade, também violaria os princípios da função social e da boa-fé objetiva (artigo 5º, XXIII, da CF e artigos 113, 187 e 422 do Código Civil), bem como o princípio geral de Direito que diz da vedação ao enriquecimento sem causa (CC, artigo 884).

Quanto ao abuso, tem-se que a previsão dos juros de mora em patamar desproporcionalmente elevado excede manifestamente os fins sociais e econômicos de qualquer condomínio edilício, encaixando-se a prática, portanto, na previsão do artigo 187 do Código Civil:

“Artigo 187 — Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

A esse respeito, apoiando-nos na lição de Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, oportuno destacar que a teoria do abuso de direito surge na Modernidade, justamente com a superação de uma concepção individualista de Direito por outras que o consideram em sua dimensão relacional (os direitos sempre em relação a outros direitos previstos no ordenamento, vinculados a uma função social). E vale frisar que princípios como o da função social e da boa-fé objetiva são vetores hermenêuticos notadamente presentes não só em nossa Constituição — seja em texto, seja em contexto —, como também em nosso Código Civil (artigos 113, 187 e 422), de modo que não há meios de se afastar a previsão de juros desses parâmetros, não podendo ser analisada como se fosse imune a tais diretrizes principiológicas (ROSENVALD; NETTO, 2020).

A propósito:

“Embora a funcionalidade, sendo um conceito social, se preste a interpretações diversas, comportando certa dose de fluidez, é inegável a utilidade do instituto, cuja feição há de surgir dos casos concretos, segundo standards valorativos consensuais. No campo negocial, observa-se, com perspicácia, a função de controle da boa-fé objetiva (e as outras funções, como já vimos). Com ela, tem-se valioso mecanismo operacional para impedir ações ou omissões abusivas, antes, durante ou depois da relação negocial. Nesse contexto, denominamos ilícito funcional o ilícito que surge do exercício de direitos. Não haveria, aqui, a princípio, contrariedade ao direito, porquanto o ato não figura entre aqueles vedados pelo ordenamento. A contrariedade surge quando há uma distorção funcional, ou seja, o direito é exercido de maneira desconforme com os padrões aceitos como razoáveis para a utilização de uma faculdade jurídica (a teoria do abuso de direito permite vislumbrar uma via intermediária entre o permitido e o proibido, trazendo maior fluidez conceitual para o ilícito civil, o que é positivo). Judith Martins-Costa anota que a boa-fé objetiva implica ‘em cabal limitação do exercício de direitos abusivos que contrariam o valor maior da solidariedade da vida social’ (…)” (ROSENVALD; NETTO, 2020, p. 284).

A partir das considerações até aqui expostas, cumpre pontuar que condomínios edilícios não exercem atividade econômica, não são empresas e muito menos instituições financeiras, não tendo por objetivo auferir lucros, muito menos a partir da cobrança de juros de qualquer natureza. Assim sendo, além de se enquadrar na definição de abuso prevista no artigo 187 do Código Civil, a previsão de juros moratórios que em muito se distanciem do referencial ordinário também caracteriza enriquecimento sem causa (CC, artigo 884), em violação ao conhecido princípio geral de direito que o veda — note-se, inclusive, que há julgado do STF que alça o princípio em questão a patamar constitucional (STF, 2ª T., Ag. Reg. em Ag. Instr. Nº 182458, relator ministro Marco Aurélio, julgado em 4/3/1997, publ. DJ 16.05.1997) [1].

Portanto, segundo a Constituição Federal e a legislação civil, considerada a função social de um condomínio edilício e sob o prisma da boa-fé objetiva, a taxa de juros moratórios que em muito supere aquela prevista no artigo 161, §1º, do CTN — 1% ao mês — é, a um só tempo, abusiva e ensejadora de enriquecimento sem causa.

Diante do quadro delineado, à falta de expressa limitação, parece-nos que o artigo 1º da chamada Lei da Usura (Decreto 22.626/33) pode ser adotado como baliza última para a definição dos juros moratórios máximos em caso de débitos condominiais. Aliás, importante ressaltar que o referido dispositivo — a seguir transcrito — demarca fronteira clara entre o lícito e o ilícito, os parâmetros por ele definidos sendo bastante úteis para estabelecer a contenção pretendida.

“Artigo 1º — É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal”.

O artigo acima transcrito não foi revogado e, assim, pode — e deve, segundo entendemos — ser aplicado como referencial máximo caso prevaleça o entendimento de que não há limitação legal no que tange à fixação dos juros moratórios em razão de débitos condominiais (artigo 1.336, §1º, do CC). Isso ao menos para que se evitem abusos que transponham o dobro de 1% ao mês, patamar previsto no artigo 161, §1º, do CTN (c/c artigo 406 do CC) e que se toma por referência à falta de lei específica que disponha em contrário. Aliás, como bem destacou o TJ-RS ao julgar a apelação nº 70081067399, “não teria sentido reduzir a multa moratória de 20% previsto na Lei 4.591/64 para 2% (artigo 1.336, §1º, do CC) e permitir juros livres, nessa relação jurídica”.

Por todo o exposto, parece-nos claro que o previsto no artigo 1.336, §1º, do CC não pode representar uma cláusula aberta e imune a limites quanto à fixação de juros moratórios para o caso de inadimplência de contribuição condominial. E isso não só pelos motivos já expostos, mas também em razão da medida extrema, drástica, prevista como consequência do inadimplemento de tais contribuições, qual seja, a penhora do imóvel, consoante se infere do artigo 3º, IV, da Lei nº 8.009/90, possibilidade que é amplamente acolhida pela jurisprudência [2] e que, nas circunstâncias, torna ainda mais evidente a necessidade de se estabelecer um limite para a previsão de juros moratórios na hipótese em comento.

 

Referências bibliográficas
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Código Civil comentado. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; BODIN, Maria Celina. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. V. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

 

[1] Referindo-se ao artigo 884 do CC, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes afirmam que “a recorrência na alusão ao enriquecimento injustificado, pela doutrina e pela jurisprudência, contribuiu para que o princípio que proclama sua vedação fosse acolhido pela codificação civil brasileira” (2006, p. 751).

[2] Por todos, AgInt no REsp 1851742/PR, julgado em 29/6/2020, e Ação Rescisória 2016/0296136-0, julgado em 9/5/2018.

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