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Custo proibitivo da arbitragem como óbice à jurisdição
Publicado originalmente
Por Marcos Luiz de Melo
Contrato de prestação de serviços com convenção arbitral, via cláusula compromissória, com valor de R$ 80 mil no todo. Eventual disputa entre partes decorrente do contrato deveria ser decidida por determinada câmara arbitral. Custo da “taxa da câmara arbitral” no importe de R$ 50 mil. Isso sem contar os custos de honorários com os árbitros, e as despesas que devem ser antecipadas para que a arbitragem possa ter lugar. Por outra: muito provavelmente a parte terá de desembolsar valor superior ao discutido, apenas com custas de arbitragem, honorários de árbitros e despesas relacionadas. Pedimos a leitura para melhor entendimento.
Nessas condições, o impeditivo evidente dos custos de arbitragem serem até superiores ao discutido indica também evidente obstáculo à jurisdição. E nesse ponto exato é que encontramos a violação ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição.
Atualmente não há controvérsia a respeito de a arbitragem ser considerada uma forma de “jurisdição”, a jurisdição arbitral. O STJ tem-se debruçado sobre o tema e não destoa da afirmação de que “a atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem possui natureza jurisdicional” [1].
Com a entrada em vigência do Código de Processo Civil de 2015, §1º do artigo 3º, foi reafirmada a previsão legal da jurisdição arbitral. E o tema da arbitragem como jurisdição não contém disparidade na doutrina brasileira [2] e na doutrina europeia [3].
Tratando-se de jurisdição, a arbitragem goza de força vinculante e de caráter obrigatório, derrogando a jurisdição estatal, com reconhecimento da primazia do juízo arbitral na solução das disputas, mesmo quando ajuizado perante o Poder Judiciário pedido de tutela de urgência pré-arbitral [4].
O juízo arbitral também é iluminado pela competência arbitral, muito utilizada a expressão alemã Kompetenz-Kompetenz para descrever “competência-competência”, como o princípio pelo qual a câmara arbitral é competente para decidir sobre sua própria competência para a causa [5], ou mesmo que cada julgador é competente para analisar sua própria competência, embora tenham sido externadas críticas da doutrina nacional na importação pura e simples dessa nomenclatura germânica [6].
Portanto, não haveria dúvida: se há convenção arbitral entre partes, a jurisdição arbitral deve ter lugar, na forma da Lei de Arbitragem.
A Constituição Federal, no inciso XXXV [7] do artigo 5º, além da norma-regra infraconstitucional contida no artigo 3º do Código de Processo Civil [8], consagram o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, em rápida pincelada, refuta qualquer tipo de movimentação ou expediente que possa dificultar sobremaneira o direito de ação. Tratando-se de jurisdição arbitral, certamente o princípio da inafastabilidade da jurisdição está presente como pano de fundo.
Ao impor óbices exorbitantes, desarrazoados, desproporcionais ao pleno exercício do direito de ação, estamos diante de impedimento do princípio da inafastabilidade da jurisdição, ante a impossibilidade material de levar à jurisdição arbitral ou estatal lesão de direito e excluindo a garantia da tutela jurisdicional efetiva [9].
Da mesma forma que atuando na esfera da jurisdição estatal, a norma-princípio atua na órbita da jurisdição arbitral.
Para o exemplo citado, ao instituir cobrança mínima de R$ 50 mil de custas de arbitragem, sem contar os honorários de árbitros e despesas decorrentes da arbitragem, para um contrato cuja discussão total orbita em R$ 80 mil reais, há óbice categórico de levar a tutela jurisdicional ao juízo arbitral. Como exemplo, perante o Poder Judiciário do Estado de São Paulo, uma ação com valor da causa de R$ 80 mil teria como taxa judiciária o importe de R$ 800.
Perante a jurisdição estatal, já foi afirmado pelo STF que a exorbitância de custas judiciais “viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição”, no que culminou em enunciado da Súmula [10] nº 667. Leciona Marinoni [11] que o leading case da matéria foi a Representação de Inconstitucionalidade nº 1.077/RJ, de 28/3/1984, em que custas judiciais exorbitantes estariam a braços com a negativa da garantia de tutela jurisdicional.
Perante a jurisdição arbitral dá-se o mesmo, para o caso referido. A exorbitância de custas de arbitragem que certamente ultrapassariam o próprio valor discutido, impedindo à evidência a busca da tutela em face de lesão de direito. Muito certo que as custas de arbitragem devem ter ligação lógica e proporcional ao valor da controvérsia [12].
Valores de acesso à jurisdição arbitral em patamares desproporcionais e desarrazoados impedem o acesso à “Justiça” [13].
A via de acesso à “Justiça”, em casos como esse, portanto, deve caminhar pela via do Poder Judiciário, já que impossibilitada a própria instauração do processo arbitral, em face da abusividade das custas arbitrais, não sendo possível nem mesmo invocar o princípio Kompetenz-Kompetenz. Nesse caso, a via da jurisdição arbitral está obstaculizada, óbice já de início colocado pela exorbitância de custas arbitrais, que desafiam a razoabilidade e a proporcionalidade, e que impedem a própria abertura da porta de acesso arbitral para discutir o que quer que seja.
Em voto da ministra Nancy Andrighi, o STJ já afirmou que o princípio Kompetenz-Kompetenz possui exceções para situações limítrofes à regra geral de prioridade do juízo arbitral para cláusulas compromissórias “patológicas”, como “compromissos arbitrais vazios no REsp 1.082.498 e aqueles que não atendam o requisito legal específico para os contratos de adesão, cuja apreciação e declaração de nulidade podem ser feitas pelo Poder Judiciário mesmo antes do procedimento arbitral” [14].
Restaria o socorro à jurisdição estatal para a solução da disputa, já que a jurisdição arbitral coloca obstáculo praticamente intransponível para seu acesso. Se não se trata de cláusula compromissória “patológica”, na denominação da eminente ministra Andrighi, trata-se de óbice “patológico” imposto por determinadas câmaras arbitrais a impedir tais ocorrências.
Portanto, na equação da eleição da arbitragem como solução de disputas através de convenção arbitral, seja cláusula compromissória, seja compromisso arbitral, necessário atenção prévia aos custos totais [15] desse procedimento pela câmara arbitral pretendida, para não desestimular ou obstruir o direito de ação.
[1] STJ — Jurisprudência em Teses, item 9) da Edição nº 122: Da Arbitragem, em https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20122%20-%20Arbitragem.pdf .
[2] “Há no Brasil a jurisdição estatal, exercida pelos juízes togados, membros do Poder Judiciário, e a jurisdição arbitral, exercida nos termos da LArb”. NERY JR., Código de Processo Civil Comentado, 17ª ed, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 210; dentre tantos.
[3] “A arbitragem pode ser definida como um modo de resolução jurisdicional de conflitos em que a decisão, com base na vontade das partes, é confiada a terceiros. […] A arbitragem aproxima-se do padrão judicial tradicional, sendo jurisdicional nos seus efeitos: não só a convenção arbitral gera um direito potestativo de constituição do tribunal arbitral e a consequente falta de jurisdição dos tribunais comuns, como também a decisão arbitral faz caso julgado e tem força executiva”. GOUVEIA, Mariana França. Curso de Resolução Alternativa de Litígios, 3ª ed, Lisboa: Almedina, 2015, p. 119. A professora Mariana Gouveia também indica em sua obra diversos juristas nessa linha de verificação, principalmente na nota 3 da página 120 de sua obra.
[4] Remetemos novamente o leitor deste escrito à Edição nº 122: Da Arbitragem, da “Jurisprudência em Teses” do STJ, em https://www.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20122%20-%20Arbitragem.pdf .
[5] “A câmara arbitral é competente para decidir a respeito de sua própria competência para a causa, conforme o princípio da Kompetenz-Kompetenz que informa o procedimento arbitral“. Decisão monocrática da relatora ministra Nancy Andrighi na MC 13274-SP, j. 13.09.2007, DJe 20.09.2007:
[6] Pois a “Kompetenz-kompetenz alemã se aplica para situações em que o julgador se manifesta em última instância e sem a possibilidade de recurso ou impugnação. […] E não é exatamente isso que ocorre na arbitragem, há controle jurisdicional exercido, em regra, a posteriori, nos termos do artigo 20, parágrafo 2º da Lei da Arbitragem”, como leciona Luís Fernando Guerrero em artigo na ConJur aqui, indicando robusta doutrina nacional.
[7] “XXXV. a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
[8] “Artigo 3º — Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito”.
[9] Há excelente abordagem do professor dr. Luiz Guilherme Marinoni sobre o princípio da inafastabilidade da jurisdição, ao comentar o inciso XXXV do artigo 5º da CF, em MARINONI, Luiz Guilherme. Comentário ao artigo 5º, inciso XXXV. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 357-368.
[10] Súmula 667-STF: Viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa.
[11] Cf. MARINONI, ob. cit. p. 360.
[12] Sobre o tema da taxa judiciária, recentíssimo julgado do STF na ADI 3.124, em que o Conselho Federal da OAB buscou inconstitucionalidade de legislação estadual de MG que aumentou valores.
[13] Item 2 — da ementa do acórdão da ADI 3.124, a contrario sensu: “2. No caso, os valores previstos na lei impugnada não impedem o acesso à Justiça, pois fixados em patamar razoável e proporcional”.
[14] STJ-3ª Turma, REsp 1.602.076, relator ministro Nancy Andrighi, j. 15/09/2016, DJe 30/09/2016: “4. O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral”.
[15] Thiago Marinho Nunes e Mariana Gofferjé Pereira apresentaram artigo resumido de suas contribuições em obra impressa: Breves notas sobre custos e despesas na arbitragem interna, em https://migalhas.uol.com.br/coluna/arbitragem-legal/317140/breves-notas-sobre-custos-e-despesas-na-arbitragem-interna.
Assista ao Minicurso gravado (06 de outubro a 27 de outubro de 2020):
Perícia Judicial em Contratos Financeiros
Assista as aulas
Aula 1: Conceito Financeiro da Taxa de Juros
Aula 2: Índices Econômicos para Cálculos Judiciais
Aula 3: Fundamento Jurídicos e Econômicos para Defesa do Consumidor
Aula 4: Estudo de Caso de Revisão Contratual
Veja comentários de quem já assistiu:
“Parabéns Professor, Equipe Técnica e Colegas Participantes. Muito bom o Curso”
Carlos CardosoObrigada, professor. Curso esclarecedor. Parabéns.
Simara QueirozParabéns e muito obrigado. Foi um grande aprendizado.
Gevasio Soares GomesParabéns Professor, Equipe Técnica e Colegas Participantes. Muito bom o Curso.
Carlos CardosoCurso muito bom. Professor está de parabéns pelo curso, didática e material de apoio.
RicardoExcelente material de apoio.
Ana MonicaParabéns pelo curso Prof. Alcides. Gostei muito da aula inaugural, bem básica, bem elucidativa e esclarecedora para aqueles que se dedicarão às perícias judiciais. Abre uma oportunidade ímpar aos consumidores e aos profissionais de economia. Eu mesmo estou implantando algo parecido e terei muito prazer de me aperfeiçoar com essas aulas. Creio que trabalharemos muito juntos em benefício da população endividada.
Ogib Filho