Perícia prévia na recuperação judicial: a exceção que virou regra?

Publicado originalmente 

Por

 

Paulo Furtado

 

Em 2005, foram instaladas duas varas especializadas em recuperações judicias e falências na comarca de São Paulo. Os hoje desembargadores Alexandre Alves Lazzarini e Caio Marcelo Mendes de Oliveira assumiram, respectivamente, a 1ª e a 2ª vara. Imaginem como deve ter sido desafiador aplicar a lei 11.101/2005 depois de sessenta anos de vigência do decreto-lei 7.661/45.

Logo no início de sua atuação à frente da 1ª vara, o então juiz Alexandre Lazzarini se viu diante de caso complexo de recuperação judicial, que envolvia a VASP, e assim despachou: “(….) a lei 11.101/2005 é clara e quando fixa os requisitos para a postulação do processamento da recuperação judicial (art. 51), o faz considerando eles necessários para que o instituto preserve os seus princípios fundamentais (art. 47). 6) (…) em face da peculiaridade da intervenção existente e do tamanho da empresa, de cunho nacional, nomeio o advogado Alfredo Luis Kugelmas e o contador José Vanderlei Masson dos Santos, endereços em cartório, para verificarem se a devedora terá condição, e quanto tempo aproximadamente em caso positivo, para apresentar os documentos exigidos no art. 51, II e VIII, da LRF, bem como se os documentos a que se referem os incisos III e IV do mesmo art. 51, e os demais exigidos, estão formalmente em ordem e de acordo com os dados contábeis da empresa (LRF, art. 51, § 1º), no prazo de 20 (vinte) dias. Observo que não se discute a viabilidade da recuperação judicial neste momento, mas, tão somente, a possibilidade de se preencher os requisitos legais para se obter o processamento. Assim, os ilustres peritos não devem se manifestar quanto aquele fato. Para tanto, fixo os honorários de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais) para cada um, que deve ser depositado em 5 (cinco) dias. Deposite a devedora os honorários. 7) Após, será decidido a respeito de prazo para aditamento e quanto as intimações requeridas, anotando-se, porém, que as custas deverão ser recolhidas, em prazo a ser fixado”.

É isso mesmo, caro leitor: já no ano de 2005 e em caráter excepcional, porque a Vasp encontrava-se sob intervenção decretada pela Justiça do Trabalho, determinou-se uma perícia prévia para apurar se os documentos exigidos no art. 51 da lei 11.101/2005 estavam em ordem. Frisou-se que não estava em questão a viabilidade da empresa, mas tão somente a verificação da adequação dos documentos apresentados pela recuperanda.

Ocorre que tal perícia prévia, de caráter excepcional, passou a ser adotada como regra nos processos em trâmite na 1ª vara, como se fosse uma fase obrigatória em todos os processos de recuperação judicial. Trata-se, contudo, de um equívoco que infelizmente tem se disseminado em outros juízos, de forma indiscriminada, sem se atentar para os problemas provocados pela adoção generalizada desta prática.

De acordo com a legislação brasileira, só o devedor em crise pode ajuizar o pedido de recuperação judicial. Cabe a ele exclusivamente a iniciativa de tentar a solução da sua crise pelo meio judicial. E o artigo 52 da lei 11.101/2005 dispõe que, estando em termos a documentação exigida no artigo 51 da mesma lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial.

A lei 11.101/2005 não atribuiu ao juízo da recuperação neste momento inicial um juízo de cognição exauriente sobre o estado de crise da empresa. Quem fará tal análise são os credores, após a apresentação do plano de recuperação pelo devedor. Aprovado o plano, permanecerá em atividade o devedor; rejeitado o plano do devedor, será decretada a sua falência.

Portanto, a análise da documentação elencada no artigo 51 cabe ao juiz que preside o processo de recuperação, e não ao administrador judicial. O juiz não fará um mero check list da presença de todos documentos, mas um juízo de cognição sumária dos fatos, para o que, entende-se, tem plenas condições, na maioria dos casos, mesmo sem o auxílio de um perito.

A realização da perícia prévia, portanto, não pode tornar-se regra nos processos de recuperação judicial e por uma razão muito simples: ao deferir o processamento da recuperação judicial o magistrado deve fazer um juízo de cognição sumária dos fatos, sem qualquer pretensão exauriente.

Além disso, a excepcionalidade da perícia prévia justifica-se também pela preservação do papel atribuído a cada um dos sujeitos processuais e dos impactos negativos provocados pela utilização indiscriminada desta medida.

Para a perícia prévia o juiz tem nomeado profissionais que irão realizar o trabalho técnico e, no caso de deferimento do processamento da recuperação judicial, esses mesmos profissionais serão designados como administradores judiciais da empresa periciada. Essa situação gera um risco de parcialidade do profissional que receberá honorários para chancelar ou não o início de um processo de recuperação.

Na prática, o administrador judicial tem sido nomeado para realizar seu trabalho em 5 dias. Difícil a tarefa de apurar com segurança, em tempo tão escasso, fraudes por parte do devedor que vem a juízo pleitear a recuperação judicial. Se o objetivo é impedir pedidos fraudulentos, é preciso realizar trabalho aprofundado e que toma tempo, sob pena do trabalho técnico ser inócuo ou meramente formal.

Porém, quando os devedores apresentam seus pedidos de recuperação judicial, têm pressa de ver deferido o seu processamento e suspensas as ações e execuções individuais. Postergar esse momento justifica-se apenas em casos excepcionais, na medida em que o stay period é da essência de qualquer procedimento de insolvência.

Para alguns devedores, ainda, o custo da perícia prévia não pode ser desconsiderado, constituindo muitas vezes mais um entrave ao custoso processo de recuperação judicial. A maioria dos devedores, contudo, parece estar se conformando com a determinação da perícia prévia, evitando a interposição de recursos. O devedor submete-se ao poder do juízo que lhe impôs a realização de perícia e o pagamento dos honorários do futuro administrador, tudo para que a tão esperada decisão de deferimento do processamento ocorra o quanto antes.

Em busca de jurisprudência envolvendo perícia prévia, são encontrados aproximadamente 20 julgados pelas Câmaras Empresariais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apenas pouquíssimos enfrentam diretamente o tema, a confirmar a submissão do devedor no momento antecedente ao deferimento da recuperação.

Como destacou o desembargador Fortes Barbosa no julgamento do agravo de instrumento 2184085-34.2016.8.26.0000, ainda que por vezes o magistrado não detenha conhecimentos técnicos suficientes para apreciar a regularidade da documentação contábil apresentada, é preciso evidências de elementos contundentes a apontar a inviabilidade da recuperação ou a utilização abusiva da benesse legal, a justificar o risco de eventual paralisação da atividade empresarial até que a perícia se realize e seja deferido o processamento da recuperação.

Como se vê, a perícia prévia pode constituir ferramenta importante a evitar o uso abusivo da recuperação judicial, sobretudo para finalidade fraudulenta, o que, por certo, não constitui regra. Não havendo qualquer suspeita fundada de fraude no pedido, não há razão para a adoção de tal medida.

Como o juiz competente é o do principal estabelecimento do devedor, ele reúne condições, sobretudo em comarcas de menor porte, de deferir ou não o processamento da recuperação judicial. Além do exame dos documentos juntados com a petição inicial, o juiz conhece a realidade local e pode extrair do movimento forense informação que permita concluir que determinada sociedade encontra-se em crise.

Não há sentido em realizar perícia prévia em pedido de recuperação judicial do principal supermercado em uma pequena comarca, que notoriamente está em atividade, mas tem várias ações contra ele ajuizadas, além de inúmeros títulos protestados, o que revela a sua inequívoca situação de crise e o interesse de buscar a solução judicial.

Também não há razão para realização de perícia prévia em pedidos de recuperação judicial de companhias abertas, cujas demonstrações financeiras são auditadas e divulgadas periodicamente, e cuja obrigação de divulgar fatos relevantes ao mercado, reunindo o juiz plenas condições de examinar os documentos e decidir pelo deferimento ou não do processamento do pedido.

O juiz que não examina os documentos elencados no art. 51 da lei 11.101/2005, relegando esta função ao perito, comodamente deixa de realizar uma das atribuições inerentes ao exercício do relevante mister que lhe foi confiado. Quem não procura se desincumbir desta atividade, não aprende com os casos que lhe são confiados.

Afirmar-se que a perícia prévia permite identificar com segurança que o requerente da recuperação judicial é inviável, na verdade, pode servir a diversas finalidades, até mesmo como mecanismo para evitar o aumento vertiginoso no volume de processos em períodos de crise econômica. Ocorre que essa prática acaba por ir de encontro a dois objetivos fundamentais da lei 11.101/2005: recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; e retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis.

Retornando ao exemplo do supermercado, suponha-se que o juiz determine a perícia prévia e o perito aponte a inviabilidade da atividade. Para quem sustenta o cabimento da perícia prévia, o juiz deverá indeferir de plano o pedido. Um processo a menos. Contudo, tal decisão priva os credores de decidir se a empresa deve ou não permanecer no mercado. O juiz simplesmente devolve ao mercado uma empresa inviável, quando, pelos objetivos do nosso sistema de insolvência, deveria ser processado o pedido e, caso constatada a inviabilidade do plano de recuperação, ser decretada a falência e retirado do mercado o empresário.

Ademais, mesmo que os credores aprovem o plano de recuperação judicial, há a possibilidade de convolação em falência, nos casos de descumprimento dos deveres impostos ao devedor. Trata-se medida muito mais benéfica para os casos de inviabilidade do que a manutenção da empresa no mercado, a gerar abalo ainda mais nefasto aos credores, sujeitos a toda sorte de diferenciações e condutas de dilapidação do patrimônio, em um verdadeiro “salve-se quem chegar primeiro”.

Também não se pode perder de vista que um dos objetivos declarados pelo legislador é o maior rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Quando a perícia prévia leva o juiz a indeferir de plano o processamento do pedido, deixa de existir uma condição objetiva de punibilidade de crime falimentar. Com isso, o empresário que tentou fraudar credores, fazendo uso abusivo do pedido de recuperação judicial, não sofrerá consequências de natureza penal, frustrando um dos objetivos do nosso sistema de insolvência. Por outro lado, a aplicação da legislação penal é mais eficiente para evitar futuros pedidos fraudulentos, pois fortalece nos agentes econômicos a sensação de que haverá efetiva persecução penal.

Portanto, a perícia prévia não constitui mais uma fase do processo de recuperação judicial. A repercussão de sua utilização indiscriminada, com ares de benefício aos envolvidos e à sociedade em geral, deve ser vista cum grano salis, sob pena de, em um verdadeiro paradoxo, dar ao juiz poderes que não lhe foram conferidos pelo nosso sistema de insolvência brasileiro, ao mesmo tempo em que lhe retira o dever de analisar os documentos que instruem a inicial da recuperação judicial.

Para os casos específicos e excepcionais, nos quais exista fundado receio de que a empresa estaria utilizando a recuperação judicial para finalidade fraudulenta, a perícia prévia mostra-se útil e adequada, porém, frise-se, trata-se de exceção que não pode virar regra!

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PericiaBR
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