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O tribunal é lugar de ciência também

Publicado originalmente

 

Por Rachel Herdy e Janaina Matida

 

O fortalecimento da confiança na ciência é talvez a única coisa positiva que neste momento podemos extrair desta pandemia causada pela Covid-19. Teorias conspiratóriasnegacionistas e pseudocientíficas colocam em risco a saúde da população brasileira. Nesse contexto, é importante que as autoridades — dos três poderes e em todas as esferas — busquem orientações nas opiniões de experts.

 

 

Como era de se esperar, os desafios epistêmicos impostos pela Covid-19 já batem às portas dos tribunais de todo o país. E o judiciário brasileiro está, pelo menos em termos institucionais, relativamente bem-preparado para lidar com o problema. Há um conjunto de mecanismos processuais previstos para os juízes de tribunais superiores, mas também de primeira instância, que possibilitam a participação de experts nas decisões judiciais. Nos tribunais superiores, por exemplo, é frequente a convocação de audiência pública, por parte do relator do caso, para ouvir especialistas em matérias que escapam ao conhecimento judicial; e, mais comum ainda, é a participação de terceiros como amicus curiae (amigo da corte), os quais chegam inclusive a sustentar oralmente perante todos os ministros no Plenário.

 

 

 

Na primeira instância, embora não se fale muito, há uma nova porta de entrada para a atuação do expert — não como perito, mas como amicus. A possibilidade de ouvir experts na qualidade de terceiros ao processo está prevista no artigo 138 do novo Código de Processo Civil (2015). O expert pode intervir no processo a pedido do juiz, das partes ou por interesse próprio manifestado pessoalmente ou por intermédio de pessoa jurídica. Uma vez que tal disposição se aplica não só a processos civis ordinários, mas também, de forma supletiva, a outros ramos jurídicos, temos uma significativa ampliação na possibilidade de participação do expert nos tribunais do país — sobretudo quando comparada à sua participação em audiências públicas, realizadas exclusivamente nos tribunais superiores.

O atual momento — em que se reclama uma série de intervenções judiciais em meio a uma pandemia e muita desinformação — é uma boa oportunidade para se falar a respeito da relação entre ciência e decisão judicial. E nada pode ser mais oportuno do que o pedido de medida liminar incidental, no bojo da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, que hoje espera decisão do Supremo Tribunal Federal. Trata-se do famoso caso em que o Supremo finalmente reconheceu o “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário brasileiro.

 

 

O pedido de medida cautelar incidental apresentado pelo autor da ação, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em conjunto com os amicus curiae que atuam no processo, apresenta evidências suficientes para justificar uma intervenção urgente com o objetivo de diminuir a população carcerária brasileira. O autor e os amicus apresentaram, dentre outros documentos comprobatórios, um parecer do Dr. Marcos Boulos – professor de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Assessor Especial da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo – para sustentar a letalidade do Covid-19 no sistema penitenciário brasileiro.

 

A situação é séria.

 

Segundo o Relatório de junho de 2019 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a população prisional brasileira conta com pouco mais de 766 mil internos, dos quais 752.277 encontram-se custodiados em estabelecimentos do sistema penitenciário e 14.475 em outras carceragens. Das pessoas mantidas em unidades prisionais, 347.661 (46,21%) encontram-se em regime fechado, juntas com mais 248.929 (33,09%) presos e presas provisórios, seguidas por 125.686 mil (16,71%) pessoas em regime semiaberto e 2.406 (0,32%) em medida de segurança. Ainda, 721 pessoas (0,09%) encontram-se em tratamento ambulatorial e apenas 26 mil pessoas em regime aberto (3,57%).

 

 

Fica fácil entender por que o Brasil ocupa a terceira posição no ranking mundial das populações prisionais. O Brasil chega inclusive a fazer uso de “outras carceragens” (14.475 presos); e nem assim temos o número de vagas necessárias para enjaular tanta gente. Faltam ao sistema prisional cerca de 300 mil vagas. Depois de inspecionar as condições de uma das delegacias brasileiras, o 78º Distrito Policial de São Paulo, a Human Rights Watch afirmou o seguinte:

“[E]ssa delegacia foi projetada para manter vinte detentos, ou seja, contava com quatro vezes mais detentos do que deveria. Em cada cela, além dos presos espremidos no chão, encontramos de cinco a sete presos pendurados em cordas. Mesmo nos minúsculos banheiros, havia de dois a três homens em cada cela que lá dormiam. A superlotação era tão extrema que não podíamos imaginar como aquele estabelecimento amontoou dezesseis detentos a mais, apenas alguns meses antes, como fomos informados.”

Como se não bastasse, o alarmante número de 235.000 pessoas que vivem com alguma moléstia (hepatite, tuberculose, HIV, etc.) faz parte do reconhecido “estado de coisas inconstitucional”; no qual se encontra o sistema penitenciário brasileiro. Tudo é agravado pela falta de tratamento hospitalar: somente 37% das unidades prisionais conta com módulos de saúde, 48% das unidades prisionais sequer conta com farmácias, sem falar na queda do número de profissionais que atendam esta população.

Não é difícil prever o que ocorrerá quando a variável Covid-19 é somada ao estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro. Além disso, nunca é demais lembrar que os custodiados convivem com 112 mil agentes penitenciários que servem ao sistema. O coronavírus que contamina um contamina o outro, e vice-versa. As grades nada podem contra os perversos efeitos da Covid-19.

Não é por outra razão que o Conselho Nacional de Justiça recomendou aos tribunais e magistrados uma série de medidas, como a concessão de saída antecipada de regimes fechado e semiaberto a mulheres gestantes, lactantes, idosos ou demais pessoas presas que se enquadrem em grupo de risco; a reavaliação de prisões provisórias; a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva (observado o protocolo das autoridades sanitárias); dentre outras.

Fica evidente que, se a violação aos direitos humanos dos presos ainda não tinha representado, por si só, motivo suficiente para a implementação de políticas públicas no sentido de mudar esta realidade, o risco de que a população carcerária que fatalmente será contaminada venha a comprometer a saúde pública como um todo agora traz a questão de volta.

“Não há motivo para temor” — sugeriu recentemente o Ministro da Justiça, Sergio Moro. Para fundamentar esta conclusão, o ministro cita dados relativos a contaminações e números de presos em países como Itália e China. Mas há um grave equívoco metodológico da parte do Ministro. A plausibilidade da inferência que sustenta as previsões do Ministro da Justiça depende de que se traga à mesa dados empíricos sobre as condições carcerárias nesses países. Será que as condições de cumprimento da pena nesses países possuem o mesmo nível de degradação? Há déficit no número de vagas? Se sim, ele é tão severo quanto o nosso? A comparação requer que se considere as singularidades de cada sistema penitenciário, e não apenas a relação entre infectados e quantidade de presos. A luta contra um vírus que já se mostrou tão rápido e impiedoso não tolera atuações marcadas pelo desprezo a epidemiologistas e sanitaristas reconhecidos, que estão a repetir, incessantemente, a alta letalidade do vírus na realidade prisional brasileira bem como o risco concreto que essa realidade representa à saúde de toda a sociedade. Desempenhos institucionais apressados e simplistas não são exemplos a serem seguidos pelos juízes brasileiros.

 

 

Para voltar ao ponto inicial deste artigo, a relação entre ciência e decisão judicial, o que se deve exigir da parte dos nossos juízes no atual cenário é que enfrentem de forma responsável o argumento técnico oferecido pelos especialistas. Juízes não podem decidir quem deve ser preso, mantido em prisão ou solto com base em achismos, preconceitos e desinformações ‒ sobretudo quando se está em jogo a vida das pessoas. À semelhança da deferência que esperamos da população em geral, quando o assunto é direito, também devemos exigir dos juízes uma postura deferencial quando o assunto escapa de suas capacidades epistêmicas. É claro que deferir à ciência não se confunde com deferir a qualquer coisa ‒ é preciso sempre ter cuidado com as muitas formas de pseudociência.

leading case que oferece critérios para a admissibilidade de experts nos tribunais foi o caso Daubert v. Merrell Dow Pharmaceuticals (1993), julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Este precedente estabeleceu um conjunto de fatores ou indicadores para se aferir a confiabilidade científica do que afirma o expert: se a teoria pode ser e efetivamente foi testada; se a teoria foi publicada ou de alguma forma revisado por pares; qual a taxa de erro conhecida ou potencial do método utilizado; e se a teoria possui a aceitação geral na comunidade científica relevante. O que importa é que efetivamente exista uma correlação entre tais indicadores — ou outros já pensados pelos estudiosos do direito probatório — e a confiabilidade da informação oferecida pelo expert; e que os juízes (ou jurados) não se encontrem cognitivamente perdidos para os empregar.

No que tange à Covid-19, como alertado por Fux em artigo recente, os juízes precisam ter a humildade de reconhecer a sua falta de expertise. É exatamente a busca por decisões racionais e justificáveis que impõe deferência epistêmica ao judiciário. Enquanto a pandemia mata e os cientistas de todo o mundo não alcançam inovações capazes de salvar nossas vidas, não há outro caminho que o da aplicação dos saberes científicos à realidade prisional brasileira. Longe de ser um problema exclusivo da população carcerária, a diminuição dos altos índices populacionais de custodiados consiste em estratégia séria de enfrentamento da pandemia no cenário nacional, com apoio em farto conjunto de evidências. O reconhecimento da deferência epistêmica é o único caminho para decisões racionalmente motivadas em casos como este. Em tempos pra lá de difíceis, saberemos: ainda há juízes no planeta Terra.

 

 

 

 

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