Publicado originalmente

 

por HELOISA ESTELLITA

 

 

Desafios indicam a necessidade de uma intensa e eficaz cooperação internacional em  matéria financeira e penal

 

 

  1. Introdução

No dia 6 de setembro de 2019, na Escola de Direito de São Paulo da FGV, reunimos um grupo de juristas1 para discutir o possível papel disruptivo das moedas e dos meios de pagamento eletrônicos para a justiça criminal. O evento realizado insere-se em um contexto no qual se vê o crescimento significativo da relação entre as criptomoedas e a prática de crimes. Para ficar com alguns exemplos, em abril, a Polícia do Rio Grande do Sul descobriu suspeitos que mineravam2 Bitcoins (adiante apenas BTCs) para pagar pela aquisição de drogas3.

 

No caso dos dados vazados ao The Intercept, apurados na Operação Spoofing, investiga-se se os hackers teriam recebido pagamentos em BTCs pela invasão dos sistemas de terceiros4. Há também casos de pirâmides financeiras, como o descoberto na Operação Egypto, cujos aportes foram realizados pelas vítimas em BTCs5. Finalmente, em uma recente execução de busca e apreensão na residência de um conhecido empresário brasileiro, foram descobertas anotações à mão contendo o login e a senha para uma conta em uma exchange de criptomoedas6.

 

Nesse contexto, o tema da lavagem de capitais com o uso de criptomoedas desperta muita curiosidade e igual perplexidade, essa última decorrente, em parte, do desconhecimento sobre o funcionamento das criptomoedas, notadamente quanto às características mais relevantes para o tema da lavagem.

 

Para nos aproximarmos do tema, seguirei o seguinte caminho: inicio apresentando alguns conceitos fundamentais sobre as BTCs e seu funcionamento (II), para, a seguir, destacar as características que têm mais peso para o tema da lavagem de capitais (III). Discuto, então, se BTCs podem ser objeto das condutas de lavagem de dinheiro (IV), como poderiam ser utilizadas nas três fases clássicas de prática desse crime (V), e examino, em duas etapas, o papel das exchanges na transação com BTCs (VI e VII), com o que posso tecer algumas conclusões (VIII).

 

  1. Alguns conceitos fundamentais

As criptomoedas são meios de troca, centralizados ou descentralizados, e que empregam tecnologia de blockchain e criptografia para assegurar a validade das transações e a criação de novas unidades de moeda. Dentre essas criptomoedas, vamos nos limitar aqui às BTCs, por serem as mais conhecidas e usadas no momento, e apresentar, de forma rápida, conceitos fundamentais para compreensão de seu funcionamento sob a ótica de quem quer compreender seu possível papel na lavagem de dinheiro, ou seja, a descentralização, as transações P2P, o par de chaves, os endereços públicos e o blockchain.

 

A BTC é uma criptomoeda descentralizada, um dinheiro eletrônico para transações diretas ponto-a-ponto (peer-to-peer, ou P2P), realizadas sem intermediários, e que são gravadas em um banco de dados distribuído e público denominado blockchain. Essa rede descentralizada, sem autoridade administradora central, garante a ausência de ingerência de autoridades financeiras ou governamentais quanto à emissão (mineração7) e valoração das BTCs. As transações são transmitidas para a rede descentralizada de computadores por meio de um software e são confirmadas pelos mineradores e, então, inscritas neste grande livro-razão (movimentação analítica das transações), transparente e aberto ao público, chamado blockchain. Uma vez comunicadas para a rede, as transações são irreversíveis8. Assim, sempre que alguém quiser conhecer o histórico de todas as transações e a propriedade criptográfica de todas as BTCs, desde a primeira transação, basta consultar o blockchain.

 

Tem disponibilidade sobre as BTCs quem possuir a chave privada que lhe permite gastar as BTCs associadas a um endereço específico. Esse endereço específico é produto de uma dupla operação normalmente feita pelas wallets (aplicativos a isso destinados): com a chave privada se gera uma chave pública que, então, gera o endereço. Enquanto a chave privada é aleatória, tanto a chave pública, quanto os endereços são gerados aplicando-se à chave privada uma função hash9: chave privada > chave pública > endereço. Essa função hash é unidirecional, ou seja, ela facilmente gera uma chave pública e dela um endereço, mas é praticamente impossível percorrer o caminho de volta: em outras palavras, é praticamente impossível derivar uma chave pública de um endereço, e uma chave privada de uma chave pública. Isso quer dizer que a exposição do endereço, que é fornecido aos demais usuários do sistema para que a ele remetam BTCs e que funciona como os dados de uma conta bancária (agência e número da conta), nunca expõe o detentor da chave privada. Assim, todos podem remeter BTCs para esse endereço, mas somente o detentor da chave privada (tal qual a senha de acesso a uma conta bancária no sistema de internet banking) pode gastá-los. Em suma, com uma chave privada e uma chave pública, é possível transacionar com BTCs, o que se designa por “par de chaves”. Já a emissão de novas BTCs é como que um prêmio para os mineradores, ou seja, pessoas ou grupo de pessoas (pools de mineração10) que disponibilizam seus computadores para trabalharem na confirmação (inscrição) das transações no blockchain.

 

III. Quais características da BTC favorecem a lavagem de capitais?

As principais características da BTC que favorecem seu uso para a lavagem de capitais são a descentralização; a “pseudoanonimidade” e a globalidade11.

 

Como visto, a BTC é uma moeda virtual descentralizada, ou seja, ela é criada e transacionada sem a necessidade de intermediários. As transações podem ser feitas diretamente entre adquirente e vendedor no que se denomina P2P, são então verificadas por todos os usuários (nodes) e inscritas em um banco de dados público, o blockchain. Sob o olhar do crime de lavagem de dinheiro, a inexistência de uma autoridade central a quem apelar em caso de investigação ou suspeita de atividade criminosa é um fator a ser considerado. Não há nem um banco individual, nem mesmo um banco central encarregado de realizar ou monitorar as transações, como há para as fiat currencies (as moedas de curso legal, como o real, o dólar etc.). A única instância à qual se pode recorrer em caso de investigação será a uma exchange que atua como um intermediário entre os que compram e vendem BTCs12, mas desde que os usuários tenham feito uso dela. Voltarei às exchanges adiante.

 

Diz-se também que as BTCs gozam da característica da pseudoanonimidade. Ao contrário do que se pode pensar, as operações com BTC não são um meio de pagamento anônimo, entretanto elas garantem um grau de privacidade que é relevante em termos de persecução penal da lavagem de capitais. Ao abrir uma “conta”, a pessoa não tem de se identificar e basta o acesso à internet e a um cliente de BTC para gerar um par de chaves e um endereço e ter acesso a transações. Ademais, uma mesma pessoa pode ter diversos endereços, pois a capacidade de criação de endereços pela wallet a partir do par de chaves é ilimitado. Isso agrega maior privacidade às transações. Todavia, o fluxo de transações é todo registrado no blockchain13, o que dá uma transparência relevante quanto a todo o histórico de transações com as BTCs14. Uma vinculação de identidade de usuário aos endereços de BTCs só pode ser feita por um terceiro (uma exchange, por exemplo) já que o código em si não contém ou comporta a inclusão dos dados pessoais do titular do endereço15. É isso que explica o uso do termo “pseudoanominidade” (em oposição a uma total anonimidade) e que os atuais esforços de regulação do setor, sob o ponto de vista da prevenção de lavagem, dirijam-se especialmente às exchanges, exigindo que tomem medidas de identificação dos usuários (Know Your Customer).

 

Por fim, a globalidade se caracteriza pelo fato de que as transações podem ser realizadas globalmente sem qualquer obstáculo. Para isso, de novo, é suficiente o acesso à internet e a um cliente de BTC. O mesmo vale para a troca de BTC por moedas de curso legal (fiat) que podem ser feitas por intermediários ou mesmo por pessoas privadas. Todas essas transações são realizadas sem instâncias de controle, supervisão ou monitoramento. Isso torna esse ambiente propício para aqueles que pretendem “lavar dinheiro”16, mas também chama a atenção quando se trata de controle sobre o câmbio das moedas fiat (de curso legal), porque a transferência internacional de valores é feita de forma rápida e barata – uma grande vantagem das cripto quando comparadas ao sistema de transferência internacional bancário –, todavia sem qualquer controle por autoridades nacionais, o que nos remete à questão da evasão de divisas (art. 22 da Lei 7.492/86)17.

 

  1. BTCs como objetos do crime de lavagem de dinheiro

O pressuposto típico central do crime de lavagem de dinheiro é a existência de um objeto sobre o qual recaem as condutas criminosas, objeto esse que tem sua origem na prática de uma infração penal. Entre nós, esse objeto pode ser um bem, um direito ou um valor (art. 1º, Lei 9.613/98). Embora não tenhamos lei que defina o que são moedas criptografadas18, sugere-se que, no estágio atual de compreensão sobre seu uso e funcionamento, devam ser tratadas como “coisas incorpóreas, mais especificamente, com um domínio eletrônico com valor abstrato ao qual se atribui direito de propriedade”19. A Receita Federal, por sua vez, trata as moedas digitais como ativos, exigindo a declaração no IR dos ganhos de capitais com ela obtidos. Neste ano de 2019, esse mesmo órgão emitiu a IN-RFB 1888, de 03 de maio, na qual define os criptoativos como “a representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal” (art. 5º, I). Embora não seja esta a sede para tal discussão, o reconhecimento do valor economicamente relevante dos criptoativos já se impõe ao menos frente à Receita Federal, e, no caso da tecnologia envolvida no BTC, esses valores são individualizáveis e passíveis de domínio exclusivo por parte do detentor da chave privada. Com isso, parece não haver óbice a considerar as BTCs como valores para fins de que componham o objeto das condutas de lavagem de dinheiro definidas no art. 1º da Lei 9.613/98.

 

  1. BTCs e as fases da lavagem de capitais

Dito isto, cumpre saber como é que as BTCs podem desempenhar algum papel nas tradicionais fases da lavagem de capitais: colocação, dissimulação e integração.

 

Na fase da colocação, pode-se pensar na inserção de valores patrimoniais no sistema de BTC a partir da obtenção de BTCs com valores provenientes da prática de infração penal anterior. Isso pode ser feito por meio da aquisição em exchanges; em caixas automáticos de compra de BTCs com valores em espécie; em plataformas que conectam usuários para transações diretas; por meio da venda direta de bens obtidos com a prática de crimes e recebimento do pagamento diretamente em BTC; pela aquisição direta de BTCs com o produto de crime, quando, por exemplo, a venda de drogas é remunerada em BTCs; ou pela transferência de BTCs de um para um outro endereço20. O caráter criminoso dessas modalidades de colocação dependerá da forma utilizada pelo agente, apenas se ajustando ao art. 1º, caput, primeira figura, da Lei 9.613/98, quando implicarem em ocultação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade dos valores.

 

Na fase de dissimulação, contemplada no art. 1º, caput, segunda figura, do mesmo diploma legal, pode-se diferenciar entre técnicas simples e complexas. As simples relacionam-se à possibilidade de que uma mesma pessoa possa gerar infinitas chaves públicas, mudando o endereço das BTCs sem que o usuário perca o controle sobre elas. Também se pode usar os endereços BTCs de terceiros ou mesmo de agentes financeiros. Em qualquer desses casos, porém, o caminho e o rastro das transações serão facilmente identificáveis dada a transparência do blockchain. O que não é passível de conhecimento, como dito, é a identidade dos usuários. É essa combinação entre alta rastreabilidade e não identificação do titular do endereço que permite falar em “pseudoanomimidade” e não em uma anonimidade total.

 

As formas mais complexas e sofisticadas de dissimulação ou transformação envolvem os chamados mixing-services (serviços de mistura ou mescla), cuja função é justamente apagar o rastro das BTCs dentro do blockchain, ou seja, romper com a transparência inerente ao sistema. O mixing pode ser feito por meio de serviços de carteiras (web-wallets), nos quais o controle sobre a chave privada não fica com o usuário, mas com o prestador de serviço, como se fosse um banco que gere os valores depositados pelos clientes. Nesses casos, os clientes têm contra o provedor de serviços apenas e tão somente uma pretensão de pagamento das cédulas depositadas e não, diretamente, direito a esta ou àquela cédula. As BTCs custodiadas por esses provedores não necessariamente serão as mesmas que serão usadas para pagar o usuário. Por isso, as web–wallets podem ser empregadas para fazer o mixing. A diferença no caso do uso de web-wallets é que há uma espécie de autoridade central (o provedor do serviço) que tem acesso a todas as informações quanto às transações e que poderá, se o desejar ou se for a isso obrigado, implementar medidas de identificação de cada usuário (KYC), o que diminuirá o grau de anonimidade, permitindo, ainda, a implementação de medidas de supervisão antilavagem21. Entre nós, como visto, a IN-RFB 1888/19 passou a exigir a identificação dos usuários de exchanges de criptoativos, muito embora a regulação tenha fins tributários e não de prevenção à lavagem.

 

Há, ainda, serviços de mixing especializados, cuja função é justamente criar uma camada a mais de encobrimento entre o remetente e o receptor de BTCs. Cada usuário remete uma quantidade de moedas virtuais para o mixer e designa um ou mais endereços (geralmente novos) nos quais quer receber a mesma quantia, descontado o preço cobrado pelo serviço de mescla. As moedas, para falar de modo metafórico, são jogadas em uma “piscina” com as moedas de outros usuários, misturadas e, então, remetidas para os endereços designados pelo usuário. A remessa pode, ainda, ser fracionada em diversas pequenas transações22, podendo-se usar diversos provedores de mixing em operações sucessivas23. Pesquisas mostram que esses serviços têm o potencial de tornar impossível o rastreamento das moedas, além de implicarem riscos aos próprios usuários, como o de furto ou mesmo de desvio ou perda dos valores pelo encerramento ou bloqueio do serviço24–25.

 

Finalmente, a integração pode ser feita pela troca de BTCs por moedas fiat por meio de exchanges de criptoativos e posterior utilização no mercado econômico ou financeiro ou até mesmo pela aquisição direta de bens e produtos com as moedas virtuais, conduta que pode se ajustar ao disposto no art. 1º, §2º, I, da Lei 9.613/98. Em países com controle sobre as exchanges, isso pode levar à descoberta dos envolvidos na transação. Não obstante, como uma das características da BTC é justamente a globalidade, pode-se facilmente optar pela execução dessa transação em países com medidas de controle antilavagem menos rigorosas26.

 

  1. O papel das exchanges

A esta altura, o leitor já percebeu o papel central das exchanges nas transações com BTCs. Elas funcionam como intermediárias entre o mundo totalmente virtual das criptomoedas e o mundo das moedas de curso legal, as moedas fiat. Como a finalidade última de qualquer processo de lavagem de capitais é possibilitar ao detentor do produto do crime o desfrute sobre os ganhos, será praticamente inevitável o uso de exchanges. Isso é assim porque, de um lado, é preciso adquirir as BTCs com o produto de infração penal e, de outro, ainda são poucos os provedores de mercadorias e serviços que aceitam pagamento em BTCs, especialmente quando pensamos em objetos de alto valor como bens imobiliários, veículos, obras de arte etc. Por isso, o mais comum será que os detentores dos valores criminosos troquem seus BTCs por moedas fiat para que, assim, possam desfrutar do proveito do crime. É por isso que as exchanges passaram a ocupar o centro de atenção das autoridades de persecução de lavagem de capitais, o que recomenda compreender seu funcionamento, ainda que de modo mais superficial.

 

Conforme o art. 5º, II, da IN 1888/2019, exchange de criptoativos é “a pessoa jurídica, ainda que não financeira, que oferece serviços referentes a operações realizadas com criptoativos, inclusive intermediação, negociação ou custódia, e que pode aceitar quaisquer meios de pagamento, inclusive outros criptoativos”, ou, então, de forma mais simples “são plataformas por meio das quais os indivíduos operacionalizam a troca de ativos criptografados ou realizam a compra desses ativos por meio de moeda corrente nacional”27.

 

Há, basicamente, dois tipos de exchanges: as centralizadas e as descentralizadas. Estas últimas, as DEX ou plataformas de troca P2P, permitem a seus usuários realizar as transações diretamente, sem precisar da intermediação de um ente centralizado. São como marketplaces que visam a aproximar vendedores e compradores. A operacionalização das transações é feita por meio de um software e o protocolo mais utilizado é o do smart contract, ou seja, atendidos os pressupostos colocados por vendedor e comprador, a transação é realizada automaticamente28. As interfaces com essas exchanges são ainda muito complicadas para os usuários e apresentam problemas de liquidez, pois apenas algo em torno de um por cento do mercado de criptoativos circula por elas29. Uma outra característica dessas exchanges é que elas não tocam no mundo das moedas de curso legal, as fiat currencies, de modo que só é possível fazer a troca entre criptomoedas, mas não entre essas e as moedas legais. Essa característica aumenta a “pseudoanimidade” das transações, pois não haverá um intermediário capaz de solicitar a identificação dos detentores dos criptoativos. Como as DEX movimentam atualmente uma fração muito pequena das transações com criptomoedas30, interessam mais as exchanges centralizadas.

 

VII. Exchanges centralizadas

As exchanges centralizadas operam como intermediários entre os que desejam comprar e vender BTCs e os que desejam comprar ou vender BTCs em troca de uma fiat currency. Elas operam com dois sistemas: um dentro do blockchain, onde são feitas as operações de compra e venda de BTCs, e outro fora dele, compondo “uma base de dados da exchange, na qual ela mantém seu banco de informações, o livro de ofertas e todos os dados relativos a transações que envolvem as moedas correntes nacionais e os criptoativos, sendo que aqui está apenas a representação da operação”31. O usuário que deseja utilizar uma exchange pode ou transferir suas BTCs para a carteira (wallet) da corretora ou fazer uma transferência bancária para a conta da exchange. Com isso, o usuário passa a ter uma conta virtual no sistema da exchange. Nos dois casos, “os sujeitos passarão a ter um crédito para operar na plataforma, ou seja, verificarão a representação virtual do valor transferido em sua conta na exchange com o qual poderão negociar e transacionar. Verifica-se, nesse caso, a prestação de serviço de custódia de moeda corrente nacional, o que pode aventar a possibilidade de tais exchanges serem enquadradas, em parte, como prestadores de atividades típicas de instituições financeiras, meios de pagamento ou arranjos de pagamento”32.

 

Há, nesses casos, um risco significativo de confusão entre os ativos dos diversos usuários, pois a custódia fica com a exchange, que é a detentora de todos eles frente ao sistema, uma vez que possui a chave privada e, assim, é ela quem poderá realizar operações com os ativos depositados. Essa confusão também acontece no caso da transferência de valores fiat para a conta corrente da exchange, dado que há uma conta corrente com os ativos financeiros de todos os usuários, não havendo segregação em contas escriturais.33 As exchanges atuam, assim, como custodiantes dos valores de terceiros sem que haja, até o momento, regulamentação específica para isso34. Esse modo de operar implica riscos de diversas naturezas, como o de furto dos valores por meio de fraude nos sistemas de internet banking ou o de bloqueio generalizado dos valores em virtude de problemas legais da exchange ou de seus usuários, como aconteceu, recentemente, no caso da Bitcointoyou35. Neste caso, determinou-se o bloqueio total da conta da exchange em virtude de ter sido usada por agentes envolvidos com um esquema de pirâmide financeira e que a usavam como intermediária36. Além disso, a “mistura” dos valores na conta-corrente da corretora bem como das BTCs em sua carteira pode favorecer a dissimulação por atuar, na prática, como um mixing, com o risco adicional de eventual contaminação dos ativos de procedência lícita37.

 

Apesar desses riscos, as exchanges podem desempenhar um papel fundamental na identificação daqueles que pretendam servir-se de BTCs para a prática de lavagem de dinheiro e de outras infrações. Como visto, elas são o portal entre o mundo virtual e o mundo das moedas fiat, e, assim, podem identificar os detentores desses valores. Não por outra razão, a União Europeia, sob a Diretiva (EU) 2018/84338, e o FATF, em seu recente Guidance for a risk-based approach to virtual asset and virtual asset service providers39, apontam para a submissão das exchanges a registro e implementação de medidas de prevenção e controle contra a lavagem de capitais.

 

Entre nós, embora não exista regulação financeira ou de prevenção de lavagem para as exchanges, a já referida IN-RFB 1888 certamente imporá um padrão mínimo de colheita de dados de identificação, pois exige que as exchanges comuniquem à RFB a realização de operações que ultrapassem o valor mensal de 30 mil reais, caso em que deverão obter o nome da pessoa física ou jurídica; seu endereço; seu domicílio fiscal; CPF, CNPJ ou o Número de Identificação Fiscal (NIF) no exterior, quando houver, no caso de residentes ou domiciliados no exterior; e demais informações cadastrais previstas no art. 7º, § 1º.

 

VIII. Conclusão

A lavagem de capitais com criptomoedas, como a BTC, é possível. O poder de incrementar o risco de lavagem que é derivado de suas três características principais (a descentralização, a “pseudoanonimidade” e a globalidade) poderá, porém, ser bastante mitigado quando as exchanges estiverem sujeitas às medidas de prevenção e controle de lavagem. Isso porque a identificação dos usuários, que será por elas realizada, somada à total transparência das transações no blockchain tornarão a rastreabilidade bastante superior àquela que se tem hoje, por exemplo, relativamente ao dinheiro em espécie. Restam, porém, os desafios postos pela descentralização e, especialmente, pela globalização, que permitem a movimentação dos valores de forma extremamente rápida ao redor do mundo. Estes desafios indicam a necessidade de uma intensa e eficaz cooperação internacional em matéria financeira e penal.



Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on pinterest
Pinterest
Imagem padrão
PericiaBR
Artigos: 343