Qual seria o ato normativo adequado à introdução da arbitragem tributária no Brasil?

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Qual seria o ato normativo adequado à introdução da arbitragem tributária no Brasil?

 

Publicado originalmente

 

ANDRÉ LUIZ FONSECA FERNANDES

PHELIPE MOREIRA SOUZA FROTA

 

Questão ainda não tem uma resposta definitiva

 

Os textos publicados nesta coluna pelo Grupo de Pesquisa “Métodos Alternativos de Resolução de Disputa em Matéria Tributária” do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP, coordenado pelos professores Tathiane Piscitelli, Paulo César Conrado e Andréa Mascitto, têm enfrentado os diversos desafios formais e materiais para implementação da arbitragem tributária no Brasil1.

 

 

O uso deste método heterocompositivo de solução de conflitos no setor tributário implicaria verdadeira reforma tributária e processual tributária, com o potencial de atribuir maior simplificação, racionalidade e celeridade ao processo tributário e de contribuir à ampliação de alternativas à disposição para resolver as disputas entre o fisco e os contribuintes.

Daí a importância da recente propositura do Projeto de Lei nº 4.257/20192, de autoria do Senador Antonio Anastasia, que pretende alterar a Lei nº 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais – LEF) para, entre outras medidas, autorizar a resolução, via arbitragem tributária, de litígios materializados em embargos à execução fiscal, ação anulatória de ato declarativo da dívida fiscal e ação consignatória (desde que o respectivo débito fiscal seja objeto de depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia).

Como se trata de projeto de lei ordinária, parece relevante trazer ao debate público uma das mais controvertidas questões formais ligadas à arbitragem tributária: qual seria o instrumento normativo adequado à sua introdução no país?

Tathiane Piscitelli reconhece, em relação ao tema, que “estamos em um momento semelhante àquele em que se discutia, sem previsão legislativa expressa, o uso da arbitragem em contratos firmados com a administração pública.”3 De fato, antes de sua alteração, em 27.5.15, pela Lei nº 13.129, a Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem – LA) não previa, de forma expressa, a possibilidade de uso da arbitragem como método de solução de conflitos no âmbito da administração pública.

Tal possibilidade vinha sendo debatida pela doutrina, com reflexos no Tribunal de Contas da União e no Poder Judiciário. Uma das posições era a de que seria necessária autorização legal específica para que a administração pública pudesse participar de arbitragem. Era o entendimento que prevalecia no Tribunal de Contas da União4.

Havia, por outro lado, quem sustentasse a desnecessidade de previsão legal específica para que os entes públicos adotassem a arbitragem como meio de resolução de conflitos; bastaria, para tanto, a autorização genérica contida no caput do art. 1º da LA, segundo o qual as “pessoas capazes de contratar” podem se valer da arbitragem. Esse era o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no que concerne às empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista), sujeitas a regime jurídico de direito privado (art. 173, §1º, inciso II da CF/88)5.

A insegurança jurídica oriunda da divergência de posições acima exposta era mitigada setorialmente. Foi editada uma miríade de leis especiais (federais, estaduais e municipais) que permitiam, expressamente, o uso de arbitragem para resolver conflitos decorrentes de determinados contratos firmados com a administração pública; era o caso, por exemplo, das Leis Federais nº 11.079/2004 (a chamada “Lei das Parcerias Público-Privadas” – art. 11, inciso III) e 12.815/2013 (a chamada “Lei dos Portos” – art. 62, §1º), e da Lei Paulista nº 11.688/2004 (que instituiu o Programa de Parcerias Público-Privadas no Estado de São Paulo – art. 11)6.

Após o intenso trabalho de Comissão de Juristas criada pelo Senado Federal, a LA foi alterada pela já referida Lei nº 13.129/2015 com o intuito de, como se lê em seu preâmbulo, “ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem” e, assim, superar a controvérsia sobre a possibilidade de sua utilização pela administração pública (especialmente, a administração pública direta). Disto resultou a inclusão do §1º no art. 1º da LA, com a seguinte redação: “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”    

 

 

A partir daí, os debates sobre o uso da arbitragem em contratos firmados com a administração pública mudaram de natureza, “voltando-se”, como nota André Chateaubriand Martins, “as discussões para a delimitação dos contornos da arbitragem envolvendo entidades públicas, que, naturalmente, estão submetidas a maior controle da sociedade.”7 Ressalta também aquele autor que, “ainda que haja autorização legislativa para a Administração Pública optar pela via arbitral, será sempre necessário identificar caso a caso a natureza disponível do conflito.”8

Como inexiste dispositivo legal expresso que preveja o uso da arbitragem na seara tributária, o estágio das discussões brasileiras a este respeito revela, efetivamente, um cenário semelhante àquele acima exposto – antes da alteração da LA pela Lei nº 13.129/2015 – no que concerne aos contratos com a administração pública.

A descrição deste cenário é feita a seguir, ressaltando-se que os debates sobre a suposta indisponibilidade do crédito tributário não serão abordados aqui (o tema será mencionado, sem maiores detalhes, apenas quando isto for indispensável à exposição), sendo deixados para o momento oportuno. Parte-se, portanto, da premissa de que os litígios que envolvem crédito tributário são passíveis de sujeição à arbitragem tributária.

Uma vez que o art. 31 da LA9 equipara a sentença arbitral à sentença judicial, sendo que a sentença arbitral também constitui título executivo judicial (art. 515, inciso VII do CPC/1510), há corrente doutrinária que defende a desnecessidade de previsão legal específica para resolução de litígios tributários por meio da arbitragem, bastando, para tanto, a aplicação da LA. Para esta corrente, uma interpretação evolutiva do art. 156, inciso X do Código Tributário Nacional (CTN)11 permitiria a constatação de que, como a decisão judicial transitada em julgado é causa extintiva do crédito tributário – e a sentença arbitral é legalmente equiparada à sentença judicial – então a sentença arbitral também seria, necessariamente, causa extintiva do crédito tributário nos termos da referida norma do Código Tributário Nacional (CTN)12.

Tal corrente tem uma variante, que afirma que a arbitragem tributária poderia ser instituída, sem previsão legal específica, no que diz respeito a discussões anteriores à constituição do crédito tributário, “na medida em que”, afirma Priscila Faricelli de Mendonça, “a atual redação da Lei 9.307/96 permite ao poder público solucionar controvérsias mediante arbitragem, bem como por não haver óbice legal ou mesmo constitucional para que questões tributárias sejam debatidas em juízo arbitral.”13

Há, numa segunda corrente, quem entenda que a arbitragem tributária deveria ser instituída por meio de lei ordinária, podendo ser adotado o procedimento da LA para resolução dos litígios tributários(com algumas modificações). Trata-se do entendimento que motivou a apresentação do mencionado Projeto de Lei nº 4.257/2019. Ao comentar um dos artigos do citado Projeto14, Ana Paula Pasinatto chama a atenção para uma variante desta corrente, que sustenta a necessidade de lei ordinária específica para criação da arbitragem tributária no país. Aquela autora afirma que o referido dispositivo “equipara a arbitragem tributária com a arbitragem da Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996”, sendo que “essa equiparação pode causar confusão entre os institutos e criar mais óbices à inserção do instituto da arbitragem tributária no Brasil”. Para a referida autora, “a arbitragem tributária é um instituto à parte, justamente por precisar seguir outros ditames que não estão dentre os originais previstos pela Lei de Arbitragem brasileira”.

Por isto, em suas palavras, “visando maior segurança jurídica e consequente efetividade, parece-nos que ainda há necessidade de uma lei ordinária delineando sobre a arbitragem tributária, com todas as suas diretrizes, seguindo como exemplo próximo o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária de Portugal (RJAT)15. Ou seja: a lei ordinária específica conteria, para os defensores desta variante, toda a disciplina do processo arbitral tributário.

Uma terceira corrente defende, por sua vez, que a utilização da arbitragem em matéria tributária dependeria da edição prévia de lei complementar para alterar o CTN e de lei ordinária para disciplinar o respectivo processo arbitral. Há algumas variantes nesta corrente.

Leonardo Varella Giannetti faz parte de uma destas variantes, que está próxima da segunda corrente acima descrita. Aduz aquele autor que o crédito tributário é indisponível (“no sentido de que o Fisco não pode deixar de cobrá-lo ou abrir mão do crédito por livre e espontânea vontade”), mas essa indisponibilidade pode “ser relativizada futuramente pela lei”, já que “a lei pode prever a possibilidade de serem adotadas outras formas que importam na redução ou mesmo o cancelamento do crédito tributário”. Por isto, “a exigência de prévia autorização legal para permitir que o crédito tributário tenha seu montante alterado ou mesmo cancelado por ato da administração pública, distinto dos praticados nas hipóteses de revisão e controle de legalidade, retira a matéria tributária do âmbito de arbitrabilidade previsto na Lei nº 9.307/96.16

Baseando-se na jurisprudência do STF sobre as leis estaduais e distrital sobre a dação em pagamento em matéria tributária, o referido autor salienta que não seria indispensável alteração no CTN para imputar à sentença arbitral o efeito de causa extintiva do crédito tributário, sendo suficiente, para tanto, a previsão em lei ordinária. Ainda assim, ressalva ele que, “apesar de não ser obrigatória, a edição de lei complementar para alterar o CTN com tal objetivo é recomendável para conferir uniformidade ao tratamento e incentivar que os entes da federação legislem e criem a arbitragem no direito tributário.17

 

 

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Para garantir maior segurança jurídica aos contribuintes e ao fisco, Tathiane Piscitelli destaca, em outra variante da terceira corrente, a importância da alteração prévia do CTN com a finalidade de instituir a arbitragem tributária: “seria razoável defender a necessidade de alteração do CTN para que haja previsão expressa da sentença arbitral como forma de extinção da relação jurídica tributária, pela alteração ao artigo 156 do Código e, ainda, algum mecanismo de suspensão da exigibilidade, ainda que via garantia, no curso do processo arbitral, nos termos do artigo 151 do CTN.” Em seguida, alterado o CTN, “bastaria a publicação de uma lei ordinária que previsse o procedimento arbitral.”18

A mesma preocupação com a segurança jurídica e com a necessidade de alteração prévia do CTN para instituição da arbitragem tributária é demonstrada em artigo preparado por aquela autora, em conjunto com Andréa Mascitto e Priscila Faricelli de Mendonça, e que aborda o anteriormente citado Projeto de Lei nº 4.257/2019. Lê-se ali que “a instituição da arbitragem desacompanhada de uma alteração mínima no Código Tributário Nacional (CTN), via lei complementar, pode ser questionada, além de criar desconforto e desconfiança na sua utilização pelo Fisco ou pelos contribuintes. Isso porque, de nossa perspectiva, há necessidade de previsão expressa da sentença arbitral como causa extintiva da relação jurídica tributária.”19

As mencionadas autoras destacam a necessidade de alteração do art. 156 do CTN nos seguintes termos: “É bem verdade que essa crítica poderia ser superada pelo fato de que a jurisprudência, assim como o artigo 31 da Lei nº 9.307/96 (Lei da Arbitragem), deixam clara a equiparação da sentença arbitral à sentença judicial. Portanto, as menções a sentença e decisões do CTN deveriam ser interpretadas e lidas com essa amplitude. Ainda assim, a alteração do artigo 156 do Código, para contemplar expressamente a sentença arbitral, traria maior segurança jurídica ao instituto.20

Há, por fim, uma terceira variante desta corrente, que dá um peso e uma amplitude ainda maiores à prévia alteração do CTN por lei complementar para instituição da arbitragem tributária. Assinala Heleno Taveira Torres que: “O procedimento de arbitragem aplicado em matéria tributária, para ser adotado na exigência de créditos tributários ou mesmo na solução de conflitos em geral, teria que atender a todos os ditames de legalidade, como: a) previsão por Lei21, a definir a arbitragem como medida de extinção de obrigações tributárias e indicar seus pressupostos gerais, limites e condições; b) edição de lei ordinária pelas pessoas de direito público interno para regular, no âmbito formal, o procedimento de escolha dos árbitros, bem como a composição do tribunal arbitral, a tramitação de atos, e bem assim os efeitos da decisão e do laudo arbitral, além de outros (art. 37, da CF); e c) que ofereça, em termos materiais, os contornos dos conflitos que poderiam ser levados ao conhecimento e decisão do tribunal arbitral (art. 150, CF). A legalidade deve perpassar todo o procedimento, reduzindo o campo de discricionariedade e garantindo plena segurança jurídica na sua condução.”22

A contribuição daquele autor à reforma do modelo de solução de conflitos em matéria tributária é extremamente importante e mereceria um artigo próprio. Como ele próprio explica: “Temos insistido há mais de uma década sobre a necessidade de substituir a Lei nº 6.830/80 e o Decreto nº 70.235/72 por regimes processuais mais céleres e simplificados, mas também com modelos de formas alternativas de soluções de controvérsias, como a mediação, a conciliação, a arbitragem ou mesmo a transação tributária. Foi com este espírito que contribuímos para a elaboração do PL 5082/2009, o qual se encontra parado na Câmara de Deputados desde o seu encaminhamento, como uma das propostas do chamado ‘II Pacto Republicano’ ”23.

Toda a exposição até aqui feita mostra que a controvertida questão formal relativa ao instrumento normativo adequado à introdução da arbitragem tributária no Brasil ainda não tem uma resposta definitiva.

Será que, tal como se viu a respeito do uso da arbitragem em contratos com a administração pública, a natural insegurança oriunda da divergência de posições sobre a introdução da arbitragem tributária levará à edição de uma multiplicidade de leis ordinárias, a prever o uso deste método heterocompositivo em específicas situações, como no caso do Projeto de Lei nº 4.257/2019?24 Será que outras leis ordinárias serão editadas para prever, por exemplo, a possibilidade de arbitragem tributária antes da constituição do crédito tributário, ou para lidar com assuntos relativos à repetição de indébito tributário? Será que esta situação levará à modificação da LA, de modo a prever ali, expressamente, o uso de arbitragem em matéria tributária? Será que tudo isto não poderá acarretar um sério problema, relativo à compatibilidade dos regimes jurídicos de arbitragem tributária atinentes a cada uma das referidas leis ordinárias?

Ou será que tais posicionamentos implicam um déficit de segurança jurídica, e o debate formal sobre a efetiva introdução da arbitragem tributária no país somente será superado mediante prévia alteração do CTN e a subsequente promulgação de lei ordinária para cuidar do processo arbitral tributário?

São questões que ainda estão em aberto. Espera-se que o presente artigo forneça subsídios ao amplo debate público que o tema merece.

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